Em evento realizado ontem –
provavelmente marcado por sorrisos, aplausos e uma boa dose de emoção – o
candidato a prefeito de Campinas, Jonas Donizette (PSB), apresentou
suas propostas na área de atenção às pessoas com deficiência. Certamente
é positivo que essa parcela da população tenha, nos últimos anos,
demandado atenção dos gestores e postulantes a cargos públicos. Da mesma
forma, acredito que aspectos do programa apresentados sejam do
interesse das pessoas com deficiência e visem atender reivindicações
legítimas.
Porém, nesse pequeno texto pretendo
criticar aquela que já tem sido divulgada como a principal proposta do
candidato na área – e certamente foi confirmada ontem para euforia dos
presentes: a criação da Secretaria Municipal dos Direitos das Pessoas
com Deficiência. O que para grande maioria da população pode parecer
como uma conquista das pessoas com deficiência é, em minha opinião, um
grande equívoco e um retrocesso institucional, pelas razões que passo a
expor.
Em primeiro lugar, a criação de uma
Secretaria específica para tratar das questões que envolvem as pessoas
com deficiência reproduz o vício – assistencialista e piedoso – de
tratar este tema de maneira particularizada, segmentada e exclusiva. Ao
invés de um órgão específico, a temática da inclusão social das pessoas
com deficiência e da acessibilidade deve ser pauta permanente e
transversal em todas as Secretarias Municipais, da Educação e de Saúde,
passando pela de Transportes, Habitação e todas as outras. A própria
existência de uma Secretaria única pode levar gestores e funcionários
públicos a pensar que a temática da deficiência é de competência
exclusiva desta instância específica, prejudicando, ao invés de
melhorar, o desenho das políticas públicas.
Um segundo aspecto a ser considerado: se é
válida a criação de uma Secretaria para cuidar dos interesses das
pessoas com deficiência, porque não de outros grupos populacionais
também historicamente discriminados e/ou socialmente excluídos? A
vulnerabilidade e a discriminação atingem outros segmentos
populacionais, como negros e homossexuais, por exemplo. Ocorre que, ao
contrário das pessoas com deficiência, iniciativas e políticas públicas
envolvendo tais grupos são permeadas por polêmicas e discussões. E quem
vai ser contra a um órgão, com forte apelo emocional, para atender às
pessoas com deficiência?
Minha resposta para esta pergunta é: nós
mesmos! Nós, pessoas com deficiência, que deveríamos deixar de achar
maravilhoso quando dizem que somos “super-heróis” ou “especiais”. Somos
cidadãos com direitos e deveres, pessoas com virtudes e defeitos, assim
como todas as outras. Creio que não devemos nos deixar levar por um
discurso tradicional e, quiçá, bem-intencionado, mas que, aos nos
sobrevalorizar, nos diferencia. É este o discurso que esta por traz da
proposta de criação de uma Secretaria específica.
Em terceiro lugar, é preciso ter mente as
implicações práticas da criação de uma nova pasta numa Prefeitura já
inchada e com cargos de confiança em excesso. Já existem no âmbito da
administração pública municipal instâncias como a Coordenadoria de
Políticas Públicas das Pessoas com Deficiência, a Comissão Permanente de
Acessibilidade (CPA) e o Conselho Municipal de Direitos das Pessoas com
Deficiência (CMPD). O problema é que tais espaços funcionam
precariamente e/ou foram esvaziados. A Coordenadoria, por exemplo, mesmo
com uma estrutura enxuta, se bem qualificada tecnicamente, poderia
assessorar o Prefeito e as Secretarias na execução de políticas públicas
inclusivas.
A diferença entre uma Secretaria específica e
uma Coordenadoria não é apenas semântica, mas reveladora da concepção
de gestão pública que se pretende realizar. Ao contrário de uma
Secretaria única com o mesmo status de outras pastas como Educação,
Saúde e Trabalho, a Coordenadoria, sim, exerceria um papel transversal
de assessoramente, não executor, mas formulador e fiscalizador das
políticas públicas municipais. No limite, pode-se até pensar numa
Secretaria Municipal de Direitos Humanos, composta pelas diversas
Coordenadorias Temáticas, sem distinção ou privilégio para qualquer
grupo populacional.
Portanto, com base nas razões expostas,
ratificamos nosso entendimento de que não se justifica a criação de uma
Secretaria Municipal para lidar de modo específico com as questões que
dizem respeito às pessoas com deficiência. Tal experiência, iniciada na
gestão de José Serra (PSDB) na Prefeitura e depois no Governo do Estado
de São Paulo, não nos parece positiva, servindo muito mais como
estratégia de “marketing político” (na campanha presidencial, em 2010,
chegou-se ao cúmulo de se propor o “Ministério dos Deficientes Físicos”,
Folha de São Paulo, 18 de Abril de 2010).
E para que não se diga que esta é uma
posição de cunho político-partidária, também nos parece um contra-senso a
aprovação de um “Estatuto das Pessoas com Deficiência”, nesses termos,
que tramita no Congresso Nacional. A iniciativa é do Senador Paulo Paim,
do PT. Da mesma forma, o simbolismo de um Estatuto específico é o de
que “vivemos num mundo paralelo”. Não é fácil romper com questões
culturais solidificadas, que remetem ao assistencialismo, ao
paternalismo e à caridade (características históricas do tratamento dado
às pessoas com deficiência). Mas é preciso ter coragem para fazer esse
movimento e, quando nos é oferecida uma Secretaria Específica, dizer:
não candidato, obrigado, somos cidadãos, não pessoas “especiais”.
Vinicius Gaspar Garcia, 36 anos,
economista, pesquisador e ativista social. Fundador do Centro de Vida
Independente de Campinas (CVI-Campinas), uma ONG gerida pelas pessoas
com deficiência. Tetraplégico em função de mergulho em piscina, acidente
ocorrido em 1995.
FONTE: TRÊS TEMAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário