Acessibilidade e cidadania[1]
1) Um paradigma contemporâneo.
Ainda quando imperceptível o preconceito (uma forma de barreira
atitudinal), esforcem-se o indivíduo, as corporações, as entidades, os Estados
e as potestades por reconhecê-lo solenemente (e às barreiras atitudinais), e
proscrevê-lo (idem, quanto às práticas/barreiras de atitude que dele emanam) de
suas vidas pessoal ou jurídica. Pois, onde houver barreiras de atitude há
discriminação e preconceito. E onde houver discriminação, há injustiça social.
Desse modo, toda barreira atitudinal faz mal e acarreta
dissabores os quais, mais cedo do que tarde, assim individual quanto
coletivamente, acabam reverberando contra quem discrimina ou é preconceituoso,
no sentido de Ortega-Y-Gasset
(para quem todo egoísmo é labiríntico)![2]
2) Muitas barreiras atitudinais,
uma só diretiva.
Dela, da barreira atitudinal, podem-se alinhavar muitas
formas, não importa se expressas ou veladas, estas últimas conforme mais
comumente acontece nas sociedades abertas. Essa evidência universal, atualmente,
corrobora uma outra observação, em nosso caso participativa e também evidente, baseada
no comodismo ou na intolerância, de que por interferência das diversas formas
de discriminação (máxime os preconceitos) a sociedade acaba aceitando, por
omissão, a exclusão das pessoas com deficiência dos benefícios dessa mesma
sociedade.
Por isso mesmo, um movimento progressivo em escala
planetária vem sendo desenvolvido há mais de duas décadas, a partir de uma ação
mundial sob a firme orientação da ONU e das entidades que congregam as pessoas
com deficiência em torno do ideal de inclusão social em igualdade de condições.
Esses esforços resultaram, a duras penas, no que podemos convencionar como a “era
dos direitos” dessas mesmas pessoas, as quais, estando em toda parte e que pela
razão de alguma limitação física, intelectual, psicossocial, sensorial ou
múltipla, acabavam acreditando, sinceramente, que eram mesmo, em muitos casos, “incapazes”
(com aspas), mas não eram. E realmente não são! A pessoa é um todo muitíssimo
complexo e, ao lado das limitações, coexistem outras tantas habilidades e
competências que não devem ser diminuídas ou desprezadas, pois tudo isso é útil
à cidadania, ao país e à sociedade. A propósito, este registro vale a todos. É
muito lamentável, outrossim, admitir que esse sentimento ainda se encontre
presente nos corações e mentes de muita gente, com ou sem deficiência,
sobretudo em países de economia periférica em que há um predomínio das grandes
desigualdades sociais, além de desinformação sistemática e de corrupção
endêmica em maior ou menor grau de verificação e intensidade.
3) As grandes barreiras
atitudinais.
Corrupção e ignorância são, seguramente, as maiores
barreiras de atitude que as pessoas com deficiência tem de enfrentar em nossa
quadra. E é exatamente o que vamos fazer de um modo persistente e crescente até
que a ideia do desenho universal (Artigo 2, da Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência) deixe de ser uma utopia.
Com efeito, “a maior arma do opressor é a mente do oprimido”,
teria afirmado o revolucionário sul-africano Steve Biko, nos anos `60, ainda
quando da luta contra o apartheid, afinal superado.[3]
Aliás, no Brasil, vivenciamos um abolicionismo tardio.
Queremos viver, agora, um segundo abolicionismo tardio que corresponde,
justamente, à emancipação política, social, moral e econômica das pessoas com
deficiência. Isto representa igualdade para todos, conforme o modelo do desenho
universal e o conceito contemporâneo de “maior parte” política que não
exclui ninguém e, portanto, abandona de certo modo a retrógrada percepção de
que a maioria é a “metade mais um” e não o todo de um conjunto identificado por
uma só natureza, para aceitar que essa maior parte é o todo das pessoas, todo
que deve ser contemplado em todas as ações políticas e sociais.
3) A natureza que se cogita.
O que está em jogo realmente não é a possibilidade de
realizar este ou aquele papel, esta ou aquela atividade, manter-se ou
deslocar-se livremente nos diversos espaços, qualificar a comunicação
intersubjetiva, aprimorar as linguagens e as tecnologias de apoio, garantir a
interação como convém. Tudo isso são circunstâncias, sistemas, rotinas e
implementos para a consagração dos direitos subjetivos e, no caso,
fundamentais, eis que, entre nós, o regramento convencional que sintetiza todo
o aparelho cognitivo associado, multitemático e até aqui produzido pelo
pensamento esclarecido da humanidade, está assentado na Constituição Federal.
De fato, o lastro e a razão para que tudo isso aconteça,
não como expressão de bondade, pieguismo ou solidarismo estanque, mas como
obrigação institucional dos Estados-partes e das sociedades que os compõem é a
dignidade humana, radier com que são forjadas as organizações sociais e em
razão do que não se pode fazer acepção de ninguém.
4) A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência.
Assinada em 2006, foi internalizada no Brasil pelo
Decreto-Legislativo nº 186/2008, na forma do art. 5º, §3º, da Constituição
Federal, hipótese que a configura como norma constitucional (equivalente a
emenda). Após sua entrada em vigor pela forma suprema antes descrita, eis que
no ano seguinte, o Presidente LULA assinou o Decreto nº 6949/2009,
promulgando-a, pelo que se estabeleceu o início de sua eficácia plena no
território nacional. Tornou-se exigível tecnicamente no plano interno.
Conforme a norma convencional suscite o início da “era
dos direitos” das pessoas com deficiência em âmbito mundial, o Decreto de
promulgação antes aludido traduz a “era dos direitos” das pessoas com
deficiência no Brasil.
Há de se reconhecer o caráter histórico, emancipatório e
de Justiça desse empenho de Governo. Ninguém há de tirar-lhe esse mérito do
qual todos aqueles que sofremos discriminação em razão de deficiência reconhecemos.
Nada obstante, há uma distância entre o que está posto
normativamente e o mundo real, o plano dos acontecimentos em que os direitos
deveriam estar sendo plenamente gerenciados também positivamente.
O fato incontestável é que a norma convencional, incorporada
constitucionalmente em toda sua extensão e sem ressalvas, inclusive no que se
refere ao seu Protocolo Facultativo, é autoaplicável, naquilo que comportar, traduz
cláusula pétrea, por se tratar de matéria que envolve a Doutrina dos
Direitos Humanos e foi aprovada com quorum qualificado por ambas as
Casas Legislativas, e é também insuscetível de revisão constitucional
(derivada).
Sobre o Protocolo Facultativo, também incorporado na
Constituição, entende-se que por sua subscrição o país reconhece a competência
do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência para receber e
considerar comunicações submetidas por pessoas ou grupos de pessoas, ou em nome
delas, sujeitos à sua jurisdição, alegando serem vítimas de violação das
disposições da Convenção por um Estado-parte (Artigo 1, do Protocolo
Facultativo). Isto significa, na prática, que as matérias concernentes à
solução de controvérsias que versem à fiel aplicação da Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência podem ser discutidas ou rediscutidas para
além da Ordem Jurídica interna. O Supremo Tribunal Federal, nesses casos, não
detém, portanto, a última palavra. Enquanto isso, os Tribunais de Contas do
país agregam competências absolutamente inadiáveis e vitais para as pessoas em
geral e ganham, por isso, um novo perfil institucional, menos contábil e mais
proativo, sem prejuízo de suas funções clássicas. O controle externo das contas
públicas, mas não só esse tipo de controle oficial, sofisticou-se em direção às
virtudes da contemporaneidade. A alteridade passou a fundamentar mais
ostensivamente as ações do poder público e também as relações do setor privado
de uma sociedade aberta. Isso explica o interesse social crescente pelos
negócios de Estado e pela construção social como um todo, aclara o despertar
das dormitâncias da cidadania em países ainda submetidos às desigualdades
sociais mais agudas e sinalizam para um futuro de mais prosperidade para todos.
5) A distância entre a forma e a concretude.
Temos lei, certamente, mas no Brasil ainda se vive como
se a lei não existisse, ou como se ela apenas funcionasse para poucos. O Estado,
por meio do Poder Executivo, não parece suficientemente aparelhado para
garantir a todos o recurso ao pleno exercício de seus direitos. Enquanto isso, a
Administração da Justiça, engalfinhada em questões prosaicas e corporativistas,
frequentemente vaidosas, acaba perdendo a chance de realmente distribuir
Justiça aos brasileiros em qualidade e quantidade que a justifiquem
politicamente. E não há democracia efetiva - que medre com participação - sem
que se compreenda a existência de um Poder Judiciário que realmente funcione e
que sobrepaire acima de todas as críticas sociais e desconfianças públicas.
Nada obstante, o que vemos é que os Tribunais brasileiros acabam sendo, ainda,
estruturas como que feudais, pesadas, burocratizantes, territórios de um
passado que somente nos deixará quando forem reoxigenadas as suas composições
sob o crivo da meritocracia real e da participação popular. Ajudará muitíssimo
se as populações vierem a compreender a necessidade de transformação
institucional para os cenários judiciais em nossa Pátria, a começar pela
reciclagem pedagógica de seus quadros. A propósito, poucos são os Juízes que já
ouviram falar na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e,
quando isso acontece, mediante uma tomada de consciência mais ou menos
relevante e séria, se não se envergonham do quanto desconheciam em detrimento
dos destinatários da Ordem Jurídica, a quem devem servir, e do feixe de suas
próprias responsabilidades constitucionais, às quais estão submetidos
funcionalmente, insistem em fazer de conta que essa disciplina simplesmente não
existe, ou não se lhes parece tão relevante em face do círculo de giz em que se
encontram represados, escravizados pelo próprio poder que representam.
Com efeito, nomenclaturas, institutos, conceitos diversos
estão seguramente abrogados pela norma convencional, após sua internalização
com status constitucional no país. Mas, para que a tanto se reconheça é
necessário um esforço hermenêutico de atualização sistemática que tem a ver com
o modo de como se haverá de ler o conjunto ressaltado das disposições legais
preexistentes, inclusive aquelas constantes do corpo da própria Constituição
Federal, ainda não revisada para isso, e o que está regulado hodiernamente, mas
que poucos dominam, é lamentável. Essa atitude vale também para boa medida dos
quadros do Ministério Público, inclusive aqueles que cuidam dos interesses
coletivos ou difusos, cuja atuação, em tese, resulta em maior volume de atenção
e cuidado para as questões de fundamento constitucional. Chega-se ao ponto de
passar ao desaviso uma regra processual de proteção da cidadania, inscrita no
Artigo 5º, da Lei nº 7853/1989, que exige a participação efetiva do Ministério
Público, enquanto fiscal da lei (custos legis) em todas as ações
relativas à questão dos direitos das pessoas com deficiência, qualquer que seja
esse direito, qualquer que seja a pessoa, desde que relacionados, um e outra, com
a deficiência.[4]
É no contexto dessas questões que mais se densifica o
debate sobre a instituição de um Estatuto dos Direitos das Pessoas com
Deficiência que não implique em perda de substância jurídica já incluída em
nosso sistema. Penso que o Estatuto teria o propósito benfazejo de compilar
toda a legislação preexistente à norma convencional, sistematizando-a em termos
atuais, inclusive e principalmente do ponto de vista das expressões e
nomenclaturas agora empregadas na matéria inclusiva. E também para ampliar o
leque das disposições legais sancionadoras, sobretudo as de tipo penal, sem o
quê não se pode lutar eficazmente por relações sociais edificantes na defesa
dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil. Sendo certo que a
acessibilidade plena para todos deve constituir o esforço maior que se dirige
aos diversos segmentos da sociedade, assim no setor público quanto privado.
Também o acesso à Justiça está, de um modo especial, tratado
convencionalmente, mas se se contemplam as reais possibilidades desse enfrentamento,
acabamos nos dando conta que há um gap tremendo entre o que está
positivado e o que de fato acontece em termos de possibilidades concretas de
execução dos postulados da Ordem Jurídica estabelecida.
É desse modo que a igualdade de condições preconizada
pela Convenção, além da capacitação de Juízes e servidores, nos termos do
Artigo 13, ítens 1 e 2, da norma convencional, tem sido solenemente
negligenciada pelas repartições de Justiça no Brasil, inclusive no que se
refere à linguagem empregada em seus sistemas. O processo judicial eletrônico,
por exemplo, que exige interoperabilidade comunicacional, mesmo em razão de
disposições processuais aplicáveis, simplesmente não pode ser lido pelas
pessoas cegas, dado que esse processo se materializa por meio de dados
imagéticos os quais, sem o auxílio da ferramenta da audio-descrição ou da
ledoria sem custo adicional para a parte, simplesmente não consegue conhecer e
avaliar. Essa característica estranha do processo judicial eletrônico em nosso
país, inaugurado às pressas sobejamente por motivações em grande parte
midiáticas, importa em que uma pessoa cega possa vir a ser condenada sem saber
do que se trate a imputação que lhe é feita no processo de tipo eletrônico sem
acessibilidade comunicacional. E sem a mínima acessibilidade comunicacional que
seja, ademais, as pessoas surdas falantes da Língua Brasileira de Sinais
(Libras) sequer têm acesso, por intermédio dessa que é também uma língua
oficial no país, aos principais documentos legais como a Constituição Federal e
a própria Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em mídia
eletrônica (DVD) que possa ser ordinariamente distribuída, país afora,
juntamente com outras mídias convencionais já em uso sistemático,
comercialmente ou não. O mesmo se diga quanto às pessoas surdas usuárias da
língua portuguesa, igualmente desassistidas, em geral, quanto às soluções de
acessibilidade de que precisam. Falta-nos, ainda, uma lei que torne a tudo isso
obrigatório, sob risco de penalidade eficaz, e que conjuntura alguma tem
legitimidade suficiente para objetar. Vale mais à Nação o direito natural de
conhecer-se a si mesma e propiciar a comunicação efetiva entre os seus filhos.
Por outro lado, para a imensa maioria dos Juízes e dos
servidores de Justiça no Brasil - digo-o, sem receio, assumindo, embora, a
leviandade de não dispor de uma pesquisa social aplicada quanto ao enredo -,
mas com base em minhas observações participativas de trinta anos de judicatura
inteiramente engajada e crítica do corporativismo do setor, acessibilidade não
passa de “rota acessível”, quando muito.
Em termos gerais e mesmo que venha a ocorrer uma ou outra
recomendação de gestão positiva a respeito do assunto, inclusive da parte do
Conselho Nacional de Justiça, órgão que exerce o controle externo do Poder
Judiciário, não se tem noção do que acessibilidade em meio judicial quer
significar em toda sua extensão!
6) Acessibilidade.
A acessibilidade é um dos postulados principiológicos em
que está assentada a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Embora não se cogite de hierarquia dos valores ali inseridos, não se pode
deixar de levar em consideração a enorme envergadura instrumental desse valor
intrínseco da Inclusão Social, esta que inclui virtudes como autonomia, vida
independente e autogoverno, empoderamento, equiparação de oportunidades,
exclusão zero, modelo social da deficiência.[5]
No meio inclusivo parece dispensável referir que a
acessibilidade não se reduz à ideia sobre a efetiva existência de “rotas
acessíveis”, no sentido arquitetural ou físico da expressão. Antes o contrário.
Acessar é interagir e a interação humana não se realiza apenas por meios
físicos. Uma atitude comportamental pode referir-se ao pensamento puro que
venha naturalmente a interessar no socius. A vontade de alguém em
condições de vida semivegetativa, por exemplo, não pode ser desprezada, antes
deve ser aferida. Já há tecnologias de ponta que fazem leituras acuradas, a
partir da expressividade do olhar. A criatividade é meio de atingir e efetivar
a acessibilidade, e não deve ser reprimida ou padecer de falta ou escassez de
investimentos, ainda que subsidiados pelo Estado e mesmo que razões de
conjuntura possam eventualmente divergir dessa necessidade social
incontornável.
Por outro lado, a linguagem, que é forma, dita a
superioridade da raça e afirma a nossa dignidade, dentre outros meios de
expressão de nossa existência.
Acessar, em termos inclusivos, significa realizar, pela
inserção social, o potencial humano na interação com múltiplas barreiras que
possam obstruir a participação plena do indivíduo ou de grupos de pessoas na
sociedade em igualdade de condições com os demais (Artigo 1, da Convenção).
7) Acessibilidade e empoderamento.
Essa abordagem, rigorosamente convencional, pressupõe um
atributo indissociável: o empoderamento!
Empoderar é garantir ao vulnerável, a plenitude de suas
possibilidades humanas, mediante a disponibilização e o emprego, no caso das
pessoas com deficiência, de recursos assistivos, tecnológicos ou criativamente
dimensionados para as diversas espécies de limitação ou dificuldade que tenham
de ser superadas, seja no trabalho, na escola, no lazer, em casa, em todo lugar
e em todas as atividades nas quais se pretenda inserir, para que essa pessoa
possa exercitar, já empoderada para o autogoverno, de igual para igual, os seus
direitos que estão associados ao seu patrimônio jurídico e à sua dignidade, não
à sua condição física, intelectual, psicossocial, sensorial ou múltipla.
As deficiências, desse modo, refletem um estágio de
desenvolvimento social do meio organizado em que se vive, não de dignificação
da condição humana da pessoa com deficiência, que é um axioma jurídico, um
valor como que absoluto, insuscetível de relativizações.
De seu turno, as condições para esse empoderamento podem
ser naturais ou constituídas. Muitos superam por si mesmos as próprias
dificuldades e são muito bons! Esses, porém, não são paradigma para o
estabelecimento de uma política pública de ação afirmativa à Inclusão Social,
pois o que serve de substrato a uma tal regulação é o promédio da condição
humana a ser protegida contra toda vulnerabilidade que as pessoas superdotadas
de talento não chegaram a experimentar radicalmente, apesar de suas diferenças
e do caldo de cultura que o preconceito findou por sufocá-los de algum modo. Já
ouvi heresias do tipo a rechaçar a política afirmativa de cotas, sobretudo nas
Universidades, em razão da presença proativa do Ministro Joaquim Barbosa no
Supremo Tribunal Federal... Já ouvi outras tantas, tão ou mais vituperiosas
como aquela de que Juízes em geral não podem ser cegos. Quanta estupidez que
associa, numa química explosiva, ignorância cognitiva e prepotência situacional
de dominação!
Aliás, a Suprema Corte, que já superou a barreira étnica
e a de gênero, pelo visto, reclama também a superação da barreira atitudinal
que impediu, ao longo de sua história, de ter uma pessoa com deficiência em
seus quadros para contribuir no aprimoramento da construção da jurisprudência
que vai favorecer, por medida de Justiça e em razão do perfeito atendimento da
Carta e da legislação de regência ao universo de pessoas com deficiência no
Brasil, sem necessidade de que tenhamos de nos socorrer do Protocolo
Facultativo que nos garante o direito de demandar ao Comitê da ONU encarregado
da composição desses conflitos em sede internacional.
Pode-se, pois, afirmar que o acesso à Justiça é talvez a
cláusula mais recorrente de empoderamento com que as pessoas com deficiência passam
a lutar pela observância fiel e exaustiva de seus direitos, a partir da
construção de meios com os quais efetivamente pelejam e se autoafirmam na
medida justa, ainda que o mundo não lhes proporcione as “adequações razoáveis”
a que também tem direito fundamental. Para isso, será sempre necessário um
corpo judicial qualificado tecnicamente o bastante e também preparado e
sensível do ponto de vista atitudinal para garantir, por meio da aplicação
sobranceira e racional do Direito, a superação das barreiras idiopaticamente
montadas para impedirem o florescimento da paz, da prosperidade e da felicidade
para todos.
Repete-se, ao
fim, o que diz o Professor Ferdinand Cavalcante Pereira, da UFPI:
O empoderamento devolve poder e dignidade a quem
desejar o estatuto de cidadania, e principalmente a liberdade de decidir e
controlar seu próprio destino com responsabilidade e respeito ao outro. O
débito social das instituições políticas e estatais diminui à medida que seus
agentes desenvolvam ações e condutas de efetiva participação e mudança sociais.[6]
8) A
acessibilidade na Convenção.
O conceito jurídico de acessibilidade, além do mais, está analiticamente
estabelecido na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de
acordo com o seu Artigo 9, o qual dispõe de dois ítens com diversas alíneas.
A norma convencional estabelece que, para o fim de possibilitar às
pessoas com deficiência viver de forma independente e participar plenamente de
todos os aspectos da vida - todos, sem exceção! -, deverão ser adotadas medidas
ajustadas ao asseguramento do acesso dessas pessoas, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à
informação e instalações abertos ao público ou de uso público, tanto na zona
urbana como na rural. Pressupondo a identificação de barreiras e obstáculos à
acessibilidade, também e principalmente as de atitude que derivam comumente de
preconceitos arraigados no socius, não raramente reveladores de viés
autoritário e colonizante, tais medidas se devem prestar ao redimensionamento
funcional de prédios, estradas, meios de transporte e demais instalações
internas e externas em geral com vistas ao seu uso conforme o parâmetro do
"desenho universal". Do mesmo modo, as informações, as comunicações e
outros serviços, inclusive os veiculados por meio eletrônico, além dos emergenciais,
precisam guardar o "desenho universal", que confere acesso a todos,
não somente a uma suposta maioria.
Além disso, os Estados-parte estão obrigados a estabelecer padrões
mínimos de normatização técnica para a garantia da acessibilidade, segundo o
padrão do "desenho universal", proporcionar formação e capacitação
aos atores envolvidos, dotar os espaços públicos ou de uso público de plena
sinalização em formatos de fácil assimilação e leitura, mediação, guias,
ledores, intérpretes de língua de sinais, promover outras formas de assistência
e apoio a pessoas com deficiência tendo em vista as informações de que
necessitem, promover o acesso dessas pessoas a novas tecnologias da informação
e comunicação, inclusive à Internet, conceber, desenvolver e disseminar a produção
de novos sistemas e tecnologias de informação e comunicação, objetivando
acessibilidade com custo mínimo.
Tudo isso revela alteridade, palavra que concentra uma síntese
muitíssimo apertada, embora inteiramente substanciosa quanto às necessidades de
descrição do objeto aqui comentado. Mas, afinal, o que pode ser definido como
alteridade que serve a esse propósito sintetizador? É ser capaz de apreender o
outro na plenitude de sua própria dignidade, e não na conformidade de nossa
própria ética ou na supremacia dos próprios interesses. Olhar para o outro,
conforme a sua perspectiva para, sem abandonar a própria identidade, procurar
compreender com mais profundidade e menos superficialidade os objetos que se
encontram à nossa volta, sobretudo aqueles que se relacionam com os direitos
alheios. É respeitar as diferenças e reconhecer, sobranceiro, que a diversidade
é o que há de mais convergente na existência humana, pois a dignidade da pessoa
notabiliza a todos e não somente a alguns. O sentimento de alteridade exclui a
possibilidade de um substituir-se a outro. E quanto menos alteridade existir no
contexto das relações intersubjetivas e sociais, mais conflitos acontecem.
Se mais fosse possível referir ao instituto da acessibilidade das
pessoas com deficiência aos setores públicos ou aos ambientes de uso público,
muito não se poderia acrescentar, salvo pelo registro de que, muito embora não
se trate de um termo equívoco ou indeterminado, presta-se, por outro lado, a
robustecer a ideia de expansão lógica de seu conteúdo e de suas possibilidades.
E é exatamente o caráter construtivista que melhor afirma, de modo progressivo
e potencial, a sua própria natureza. Pois, afinal, também "o homem é um
ser inacabado", conforme genial intuição de Cabral de Moncada, filósofo
português.[7]
9) Acessibilidade e cidadania.
Sucede que, diante do que foi exposto, não há outro registro mais
significativo a proceder do que situar os conceitos de acessibilidade e
cidadania como que sinonímicos, restando semanticamente pleonástica a associação
dessas palavras numa só oração.
Acessibilidade sem cidadania é construção inútil. Cidadania sem
acessibilidade, disfuncional.
Em matéria de Inclusão Social, a ordem é descolonizar e reinstalar a
cidadania para todos!
Por isso, para concluir, deve-se concordar inteiramente com a acertada
chamada para esta Mesa 4, segundo a qual a acessibilidade é expressão da
cidadania.
MUITO OBRIGADO!
Roberto Wanderley Nogueira
[1] Palestra apresentada por Roberto Wanderley Nogueira (http://lattes.cnpq.br/0179326544123326) à Mesa 4 sobre Acessibilidade como
expressão da cidadania, no Seminário Nacional sobre Controle das
Políticas Públicas de Acessibilidade, promovido pelo Tribunal de Contas da
União (TCU): Brasília, 12 e 13 de setembro de 2012.
[2] Ortega y Gasset, José (1987): A Rebelião das Massas. São Paulo:
Martins Fontes, p. 153.
[3] http://giovanimiguez.com/files/noticia/20120811192037_midia_e_conformismo.pdf
(acesso em 13/09/2012)
[4] Art. 5º, Lei nº 7853/89 - O Ministério Público
intervirá obrigatoriamente nas ações públicas, coletivas ou individuais, em que
se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas.
[5] Sassaki, Romeu Kazumi (2010): Inclusão – Construindo uma sociedade
para todos. 8ª edição. Rio de Janeiro: WVA, pp. 35-55.
[6] http://www.fapepi.pi.gov.br/novafapepi/sapiencia8/artigos1.php (acesso em 12/09/2012).
[7] Moncada, L. Cabral de (1966): Filosofia do Direito e do Estado - Doutrina
e Crítica, vol. 2º. Coimbra: Coimbra Editora, p. 342.
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