É formado em pedagogia, Especialista em Fundamentos da
Educação, Especialista em
Educação Especial com ênfase em Inclusão e mestre em educação. Secretario
Geral da União Paranaense de Cegos (UPC) Interventor do
Instituto Paranaense de Cegos (IPC) e conselheiro do Conselho Estadual dos
Direitos das Pessoas com Deficiência - COEDE/PR.
e-mail: enio.darosa@yahoo.com.br
Neste pequeno artigo, pretendo
fazer breves considerações críticas sobre uma meta específica do Plano Viver Sem
Limites, do Governo Federal com dotação orçamentária
prevista para 7,6 bilhões de
reais em investimentos e gastos com ações voltadas à melhoria de vida das
pessoas com deficiência baixa renda.
Refiro-me à meta que almeja, a estruturação de cinco centros de treinamento de cães-guia, em
cinco diferentes regiões do país.
De acordo com a redação do
Plano: "Implantação de cinco centros tecnológicos de formação de
instrutores e treinadores de cães-guia,
distribuídos em cada uma das regiões brasileiras.
O primeiro centro será entregue
em 2012, no Balneário Camboriú/SC.
Em 2013, serão entregues duas unidades e, em 2014, finaliza-se com outras duas.
No ano de 2007 foi sancionada a
Lei nº 11.126, de 27 de junho de 2005, que assegura à pessoa com deficiência
visual, usuária de cão-guia, o direito de ingressar e permanecer com o animal
em veículos e estabelecimentos públicos e privados de uso coletivo".
Afim de refletir e avaliar a implementação dos
direitos das pessoas com deficiência, durante o processo de realização da III
Conferência Nacional, o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência - CONADE, elegeu quatro eixos, sendo que, no eixo três encontramos
escrito: "III - Saúde, prevenção, reabilitação, órteses e
próteses...".
No texto base elaborado com a
intenção de subsidiar as reflexões preparatórias a III Conferência Nacional, no
que diz respeito ao processo de implementação da Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, afirma que o Brasil adotou três eixos fundamentais:
"(a) articulação de
políticas transversais para a inclusão e a promoção de direitos e cidadania,
com foco nos Direitos Humanos;
(b) tratamento da inclusão sob
a ótica do combate à fome e à pobreza...".
Por sua vez, no Plano Viver Sem
Limites, as ações estão articuladas em quatro eixos temáticos: "...
Inclusão Social: Visa a incluir as pessoas com deficiência na sociedade, tanto
no mercado de trabalho, como no cuidado
diário destas pessoas, em situação de pobreza".
Neste sentido, constatamos na redação dos documentos e no
discurso de políticos , bem como na fala de dirigentes de algumas das
organizações que representam pessoas com deficiência, que, as ações do Plano
Viver Sem Limites, apresenta dois focos
bem definidos: A afirmação das necessidades deste segmento social como
direitos que demandam ações concretas de políticas públicas e, a priorização no atendimento das necessidades
das pessoas com deficiência mais pobres.
No entanto, em nossa avaliação,
a meta eleita como objeto de análise deste artigo, entra em contradição com o previsto no Plano, e vem sendo constantemente
e insistentemente sustentado pelos representantes do Governo Federal.
Na estruturação destes centros treinadores de cães guia, o Governo
Federal pretende um investimento de alto custo financeiro, (são mais de cem
milhões de reais) a ser retirado do orçamento público , imaginando que ,
equivocadamente nesta meta poderia estar
a redenção da falta de mobilidade das pessoas cegas.
Daí ser objeto do presente artigo, construir uma análise que procure apreender o conteúdo concreto
deste pensamento, e, demonstrar o quão equivocado pode estar este investimento,
e , o quanto os resultados prático,
podem ser duvidosos, sob o aspecto pedagógico e de atendimento quantitativo de
pessoas cegas a serem beneficiadas.
Resta claro, que nossa análise problematiza um tema que envolve
diretamente a vida concreta de milhões de pessoas reais, de carne e osso, que
mesmo precisando muito,
não conseguem se quer uma
simples bengala quando procuram os programas e serviços governamentais.
Mesmo nos dias de hoje, os
governos, em todas as esferas e níveis, não estão conseguindo garantir às
pessoas cegas pobres deste país, nem mesmo o "feijão com arroz" e parecem
prometer o "bife acebolado".
Considerar-se –ia meta realmente séria e preocupada com a
verdadeira situação, a avaliação dos impactos do cão-guia no orçamento destas
pessoas usuárias de baixa renda e, cuja solução mais prática, estaria na oferta
de bengalas de boa qualidade bem como, treinamento em orientação e mobilidade.
De acordo com pessoas cegas
usuárias, ou com familiares provedoras de pessoas cegas que utilizam cães-guia,
somente com a ração, um cachorro destes, considerado de grande porte, custa em
ração adequada, aproximadamente 300.00 (trezentos reais) / mês..
Um quilo destas rações de qualidade e
balanceadas que o tipo de animal necessita, equivale ao preço de um quilo de
filé argentino, ou seja, em torno de R$ 15,00 a R$ 20.00 (vinte) “ mangos”, utilizando
aqui, uma expressão cunhada na gíria.
Se somarmos à esta despesa,
outras tantas, obrigatórias, como, as constantes visitas à veterinários e
vacinação anual, pode-se chegar à cifra de aproximadamente, R$ 200,00; isto
tudo, sem adentrar ainda nas questões de estresse animal decorrentes do tipo de vida a que são submetidos estes
animais. Numa avaliação sumária, para que este animal consiga ter qualidade de
vida e oferecer o serviço necessário, serão precisos, por parte de seu
proprietário, o desembolso de mais de 500.00 (quinhentos reais) / mês.
Isso equivale, a quase o valor
do BPC que milhões de pessoas cegas pobres recebem por mês do Governo Federal
para conseguirem sobreviver, custeando alimentação, moradia, vestimentas e
outras necessidades básicas.
Diante disso, que me perdoem a
franqueza, mas, para que uma pessoa cega
baixa renda, beneficiária , mantenha um
animal desse com mínimo de qualidade de vida,
o Governo Federal teria de criar e conceder também o "bolsa
cachorro".
Do contrario, os milhões de
reais do orçamento público investidos na estruturação desses centros de
treinamento de instrutores, será um verdadeiro “tiro no pé” das pessoas cegas
de baixa renda, além da previsão, como normalmente acontece com o dinheiro
público quando alguns aventureiros colocam a mão.
Diante desta promessa
aparentemente atraente, custeada com o nosso dinheiro, algumas indagações são
necessárias. Depois desses centros estruturados, quem e com que dinheiro eles
serão mantidos? O Governo paga para estruturar e após vai continuar pagando
para mantê-los? Quem vai pagar pelo cachorro e pelo treinamento da pessoa
cega que pretende utilizar o
cão-guia? Para que seja respeitado o direito a igualdade de oportunidades,
todas as pessoas cegas pobres interessadas terão acesso com facilidade ao cão-guia,
ou apenas algumas mais privilegiadas conseguirão o bicho? Depois de tudo
estruturado com o dinheiro público, os cães serão distribuídos gratuitamente ou o negócio será entregue para
alguns "empreendedores" preocupados em ganhar dinheiro com a
exploração deste mercado?
Sim, mercado porque mesmo o
cão-guia também já foi transformado numa mercadoria. Contudo, sugerimos aqueles
interessados na exploração deste comércio, a realização de uma pesquisa de
mercado procurando identificar se existe possibilidade de viabilidade econômica
do negócio, baseado nas leis da livre iniciativa e na competição.
Na nossa visão (só para avisar,
eu sou cego), acreditamos que não haverá "clientes" com dinheiro
disponível suficiente, interessados na compra de um cão-guia.
Na realidade, ainda tem muitas pessoas cegas e
não cegas, com interesses os mais variados, surfando na onda do
"Jatobá". A questão do cão-guia foi transformado numa espécie de
modismo, quase que um estilo de vida, com todo o “glamour” próprio do meio, depois que algumas redes de
TV, começaram colocar pessoas cegas na tela usando cães-guia.
Se o uso desses animais já é
relativamente comum nos chamados países desenvolvidos, dado a realidade
econômica diferenciada das pessoas cegas daquelas nações, num país ainda
tupiniquim em que a maioria das pessoas cegas ainda vivem em condições de vida
degradantes, pensar a popularização do cão-guia como recurso de mobilidade, parece
uma fantasia que vai além do que a nossa imaginação criativa da conta de
compreender e apreender.
Além do mais, se lutamos pela
libertação das pessoas cegas em relação as pessoas não cegas, questionamos se
neste caso não cria-se uma relação de dependência entre as pessoas cegas e os
animais, de tal sorte que ambos viram prisioneiros. Nos casos que conhecemos ou
ouvimos relatos, cria-se uma intimidade sentimental entre esses dois seres, de
modo que esta relação acaba sendo prejudicial ao animal que perde o direito e a
liberdade de ser apenas cachorro.
Os defensores e usuários dos
cães-guia, ao menos por um instante, deveriam se colocar na posição desses
animais e perguntarem como se sentiriam sendo submetidos a tais condições de
exploração, dias após dias, no decorrer de meses e anos até o fim de suas
vidas. Se para as pessoas cegas usuárias dos cães-guia pode parecer uma
facilidade e comodidade, para os animais isso deve ser um verdadeiro saco (nos
perdoem pelo uso chulo do termo). Para que as pessoas cegas aparentemente ganhem
independência e autonomia, os cachorros perdem a suas vidas, na medida que já
não têm como escaparem da "prisão" que foram submetidos.
Do ponto de vista da verdadeira
independência e autonomia das pessoas cegas, sob o aspecto pedagógico e
psicológico, o uso do cão-guia como única alternativa de locomoção, pode trazer
muitos prejuízos na formação e desenvolvimento das aptidões mentais,
responsáveis pela concentração, atenção, audição, memorização e outras funções
funcionais do aparato psicológico e do sistema nervoso central.
Falamos isso a partir de uma
concepção que temos sobre a formação e desenvolvimento das aptidões físicas e
mentais, as quais são comuns nas pessoas cegas e não cegas.
Porém, para uma pessoa cega
andar sozinha com independência e segurança, tendo nascida ou adquirido
cegueira, vai depender das condições educacionais proporcionadas
pelo meio social onde esta
pessoa está inserida. Com isso, estamos precisamente afirmando que a aptidão de
concentração e atenção, ambas aptidões cerebrais funcionais
que se formam e se desenvolvem
com o recurso da audição e são indispensáveis na locomoção, não são inatas e
nem tampouco se desenvolvem espontaneamente na consciência das pessoas, cegas
ou não.
Isso significa dizer que,
quanto mais as pessoas cegas andarem sozinhas com o uso da bengala, maiores e
melhores são as possibilidades delas formarem e desenvolverem
as aptidões especificamente
humanas que são necessárias na formação de um aparato psicológico e um sistema
nervo central, preparados para enfrentar os desafios e os obstáculos que as
pessoas cegas precisam superar todos os dias.
Uma coisa é andar sozinha nas
ruas, tendo de enfrentar e superar por conta própria as barreiras. Outra bem
diferente é andar nas ruas dependente de
um animal com as suas limitações evidentes. Todavia, não descartamos de tudo a
possibilidade do uso do Cão-guia, mas em locais e situações específicas.
Existem lugares onde as condições geográficas e ambientais não proporcionam as
melhores condições dos pontos de referência que as pessoas cegas usuárias da
bengala necessitam na locomoção
como indicação de
direcionamento.
Se temos resistência quanto ao
uso do cão-guia, muito mais resistência ainda temos quando vemos a quantidade
de recursos financeiros públicos, serão investidos
e na estruturação desses cinco
centros.
Num país onde nem mesmo uma
simples bengala as pessoas cegas conseguem receber gratuitamente do poder
público, por meio das suas políticas sociais, colocar este montante de dinheiro
nesses centros, significa inverter a ordem das prioridades.
Enquadrada na condição de
órtese, a bengala consta entre os itens que deveriam ser distribuídos pelos
programas de reabilitação do SUS.
Mas, as coisas não são bem assim; quem já precisou de uma bengala e procurou
junto às Secretarias Municipais de Saúde, sabe do que estamos falando.
Mesmo numa capital de Estado,
como é o caso de Curitiba, aquilo que se constitui num direito é constantemente
negado, diante dos obstáculos encontrados quando alguém procura a saúde pública
em busca de uma bengala. Primeiro, é a dificuldade com o levantamento de
informações corretas sobre quem distribui, os procedimentos adotados
e onde fica localizado o
serviço encarregado pela compra e distribuição das bengalas. Mas isso ainda não
é tudo, porque uma pessoa cega que pretenda obter uma bengala via SUS, necessitará de requisição médica constatando a necessidade
e autorizando a dispensa da órtese.
Ocorre que uma consulta com um
médico especialista, oftalmologista, desde a marcação de consulta até o efetivo
atendimento, pode levar aproximadamente de seis a oito meses. Vencida esta
primeira fase, depois vem mais um longo período de espera, pois somente após a
compra da bengala, esta será
providenciada.
Com um pouco de sorte, quem
sabe depois de um ano, se não houver nenhum tropeço e embaraço pelo caminho, a
pessoa cega terá a sua bengala.
Esta triste realidade persiste sem solução não
é de hoje. O governo federal, os governos estaduais e os governos municipais,
mesmo tendo previsão legal e constando na política de saúde, nada ainda fizeram
sobre esta situação vergonhosa que atinge as pessoas cegas pobres.
Com efeito, não são poucas as
pessoas cegas, os familiares de pessoas cegas e amigos de pessoas cegas, que
nos procuram no Instituto Paranaense de Cegos (IPC),
em busca de informações sobre
onde obter uma bengala. Quando isso acontece, só nos resta dizer que
infelizmente, os governos que tanto falam em favor das pessoas cegas pobres,
pouco ou nada fazem para resolver efetivamente problemas que são simples. Pior:
não conseguem nem mesmo resolver o problema das bengalas e já ficam prometendo
estruturar centros de treinamento de cães-guia.
Na realidade, a bengala é um instrumento de
primeira necessidade e tão útil na vida cotidiana das pessoas cegas, que a
produção e distribuição deveria ser muito facilitada. Não faz sentido o fato
das pessoas cegas precisarem passar por médicos oftalmologistas apenas para
conseguirem uma autorização indicando a necessidade
da bengala. Para descomplicar,
isso deveria e poderia perfeitamente ser feito pelos programas especializados
na área da deficiência visual, a partir de uma avaliação que constate a
necessidade do uso da bengala.
Os governos (União, Estados e Municípios),
através de entendimento comum, definindo procedimentos e formas de custeio, deveriam adquirir
bengalas em quantidade e repassar para que a distribuição fosse feita pelas
organizações das pessoas com deficiência visual.
No Estado do Paraná, houve tempo em que os Centros de Atendimento
Especializados na área da Deficiência visual, mantidos pela Secretaria de
Estado da Educação (SEED), possuíam bengalas para distribuição gratuita cujas
pessoas cegas, estivessem e fossem
inscritas para aulas de Orientação e Mobilidade.
No entanto, hoje, mesmo aquelas pessoas que
tem dinheiro e estão precisando comprar bengalas, também encontram
dificuldades. São pouco os lugares onde se acha bengalas
no Brasil. Se não bastasse
isso, ainda existe três agravantes: a) os atendimentos são ruins e demorados;
b) as bengalas são de qualidade questionáveis; e c) os preços são altos,
considerando-se a qualidade do produto e o atendimento que deixa muito a
desejar.
Nesse restrito mercado , uma bengala
relativamente de boa qualidade, dessas que são mais utilizadas pelas pessoas
cegas brasileiras, custa em média 70.00 (setenta reais). Muitas pessoas cegas
pobres que ganham apenas o BPC, precisam ver seu beneficio ainda mais reduzido,
quando necessitam arcar com mais esta despesa.
Não tivemos a paciência de
fazer a conta, mas acreditamos que com os valores gastos na estruturação dos
cinco centros de treinamento de instrutores de cães-guia, seria possível
comprar e distribuir pelo menos duas bengalas para cada pessoa cega pobre deste
país. Com isso, além de garantirmos o direito de acesso a bengala, ainda estaríamos
evitando que as pessoas cegas pobres precisassem retirar dos parcos salários
que recebem (quando recebem), certas quantias para pagarem por uma bengala.
Ademais, o dinheiro dos centros também poderia
ser investido no desenvolvimento ou aperfeiçoamento de bengalas com alguns
dispositivos tecnológicos mais avançados.
Já existem, no Brasil, varias
experiências interessantes que poderiam ser incentivadas e apoiadas com
recursos públicos.
Assim, em vez do Governo Federal colocar esta
quantia de dinheiro na estruturação de centro de treinamento de instrutores de
cães-guia, deveria aproveitar melhor esses recursos, estruturando, nas
Universidades Federais Tecnológicas, núcleos de produção não apenas de
bengalas, mas inclusive de outros equipamentos educacionais que são utilizados
na educação das pessoas com deficiência visual. Em algumas dessas
Universidades, já existem experiências que poderiam perfeitamente serem
melhoradas
e ampliadas com o suporte
financeiro da União.
Por falta de informação de
muitas pessoas cegas, inclusive de professores de cegos e cegas, existe um
certo preconceito quanto ao uso da bengala. Muitas pessoas cegas, por medo ou
receio de assumirem a cegueira, num primeiro momento, apresentam resistência de
usar a bengala. Precisamos fazer um trabalho consistente e persistente de
convencimento sobre as pessoas cegas que estão sendo mal instruídas sobre a
importância e a necessidade do uso da bengala.
O uso da bengala, é uma necessidade
primordial que vai garantir as pessoas cegas a sua verdadeira autonomia e
independência, sem as amarras do cão-guia. Pensemos na vida atribulada de uma
pessoa cega trabalhadora usuária de cão-guia e ao mesmo tempo também usuária de
transporte coletivo, principalmente daquelas localidades periféricas onde os
ônibus andam abarrotados de pessoas apressadas que estão sempre correndo para
não perderem o horário.
Quem é trabalhador e já andou
de ônibus do transporte coletivo, sobretudo nas cidades maiores, sabe muito bem
que existem certos horários que nem mesmo as pessoas
cegas são respeitadas, quanto
mais então o cão-guia. Esses cachorros não estão preparados para enfrentarem,
todos os dias, semanas após semanas, meses após meses
e anos após anos, as intempéries
do tempo (chuva, frio, calor, etc.). Sabe um daqueles dias de chuva forte que a
pessoa cega sai de casa com o
guarda-chuva na mão, enquanto o cachorro fica ensopado de água. Aí a pessoa
cega embarca naquele ônibus lotado de pessoas que também estão molhadas e vão
precisar dividir com o cachorro
o mesmo espaço apertado como
sardinhas em lata.
Contraditoriamente, para que as
pessoas cegas possam acessar os ambientes público e privados de uso coletivo,
acompanhadas pelos cães-guia, esses animais precisam estar devidamente limpos e
com as vacinas em dia.
Nossa pergunta é: cachorros de pessoa cega pobre e
trabalhadora, que mora em localidade sem asfalto em casa sem maiores condições
de higiene, poderá estar o tempo todo bem limpo, com as vacinas em dia,
perfumado e cheirosinho?
Ora, o uso de cães-guia pode
até parecer uma coisa interessante e atraente, mas para certas pessoas cegas
que não precisam enfrentar a “ pauleira” do dia-a-dia agitado e corrido dos
trabalhadores. O cão-guia não é para qualquer pessoa cega. Uma coisa é ser
pessoa cega pertencente a famílias paupérrimas,
vivendo em condição humana degradante; já outra, muito diferente é ser também pessoa cega
pertencente a família rica, vivendo em residência de luxo, com carro e motorista
particular. Ambas são cegas, mas levam vidas totalmente distintas, de tal sorte
que a cegueira como diferença desaparece. Se para a pessoa cega rica o cão é
apenas mais um adereço de luxo, para a pessoa cega pobre o bicho transforma-se
num verdadeiro problema.
Por isso, o uso da bengala livra as pessoas
cegas desses e tantos outros constrangimentos sociais que podem ser evitados.
Se ensinadas desde cedo quanto a postura corporal correta e o uso adequado da
bengala, as pessoas cegas usuárias de bengalas, despertam admiração e
curiosidade pela sua elegância no andar.
Nesta perspectiva, em vez de colocar dinheiro
no treinamento de instrutores de cães-guia, os governos poderiam investir na
formação de professores de orientação e
mobilidade. Na portaria que o Ministério da Saúde editou, ainda em 2008, com a
finalidade de estruturar os serviços de reabilitação na área da deficiência
visual (aliás, também ficou apenas na promessa, já que nada ainda foi feito),
exige-se professores de orientação e mobilidade, formação acadêmica que vai
além do que normalmente encontramos nos professores especializados. Em outras
palavras, está faltando professores com formação adequada para a realização das
atividades de orientação e mobilidade. Contraditoriamente, o dinheiro que
poderia ser investido na formação de professores especialistas devidamente
preparados, será investido na formação de instrutores de cães-guia.
Como constatamos, um plano
realmente muito ambicioso, com dotação orçamentária de quase oito bilhões de
reais, cujo foco é a garantia dos direitos das pessoas com deficiência mais
pobres, contempla uma meta que entra em contradição com o seu objetivo
estratégico.
Diante desta situação, nos perdoem pela
franqueza e objetividade, mas muitas pessoas cegas pobres deste país, que ainda
vivem em condições sub-humanas de moradia nas periferias das cidades
brasileiras, não têm nem mesmo uma casa preparada para receber e abrigar com os
devidos cuidados necessários,um desses cachorros de raças que algumas pessoas
cegas elitizadas utilizam para desfilarem esbanjando soberba.
Somente quem não conhece a triste e dura
(aliás, muito dura mesmo) realidade das pessoas cegas pobres deste país, pode
imaginar que com a estruturação de cinco centros de treinamento de cães-guia, o
Governo Federal, em colaboração com os governos de Estados e Municípios, vai
retirar essas pessoas do atual estado de abandono em que se encontram, muitas
ainda literalmente trancafiadas em quartinhos escuros nos fundos de quintais de
barracos de periferias de todas as cidades brasileiras.
Portanto, se o real e
verdadeiro objetivo do plano Viver Sem Limites é, de fato, promover a inclusão
pela via do combate a pobreza, os recursos financeiros desta meta estão sendo
muito mau direcionados. Num país onde as pessoas cegas pobres não têm sequer o
direito assegurado de receberem dos governos nem mesmo uma simples
bengala, falar numa política
pública com milhões e mais milhões gastos do orçamento público, no treinamento
de instrutores de cães-guia, procurando impingir a falsa idéia que na
utilização desses animais poderá estar a redenção da mobilidade das pessoas
cegas, não é só um desperdício do nosso dinheiro, mais também e sobretudo uma
irresponsabilidade política e pedagógica, com a qual não podemos concordar.Um
dia ouvi nas palavras de um dirigente do sindicato dos servidores municipais de
uma dada cidade, que estavam em greve, numa plenária diante do prefeito, a
seguinte
colocação durante a sua
intervenção: "o bom censo diz que eu deveria me calar neste momento, mas a
minha consciência diz que eu devo falar". De fato, muitas pessoas não
falam porque temem as represarias que podem sofrer quando dizem certas verdades
que deveriam ficar ocultas.
Não obstante a decisão política
do governo federal, queremos deixar claro que as nossas criticas são
direcionadas principalmente algumas pessoas cegas, técnicos e especialistas da
área da deficiência visual que certamente defenderam a colocação desta meta no
plano Viver Sem Limites.
Por isso, o dia que cada pessoa cega pobre
deste país tiver garantido pelo menos duas bengalas de boa qualidade, uma para
bater e outra guardada na bolsa, por uma questão de precaução no caso da quebra
da outra, quem sabe nós possamos rever o nosso posicionamento e aceitarmos o
gasto de dinheiro público no treinamento de instrutores de cães-guia.
Se esta meta com os seus
respectivos valores financeiros não forem revistos no plano, na nossa modesta
opinião, o plano não vai atingir o seu real objetivo de fazer a inclusão dando
prioridade aos investimentos em ações
direcionadas para atender as reais e verdadeiras necessidades das pessoas cegas
mais pobres.
Francamente, esperamos que isso
seja debatido e reavaliado durante a III Conferência Nacional dos Direitos das
Pessoas com Deficiência. Na mesma direção, esperamos também que este texto
sirva de contribuição e possa suscitar discussões e reflexões no interior das
organizações de base das pessoas cegas.
Reafirmamos: se as organizações
de base, com representatividade e legitimidade política que atuam na defesa dos
direitos das pessoas cegas, não questionarem esta e outras situações
semelhantes, nós vamos continuar sofrendo as conseqüências de decisões definidas por pessoas que não
vivem no mundo real da maioria das pessoas cegas deste país.
Concluímos assim este texto,
tomando de empréstimo um refrão do que considero , uma bela música do cantor Belchior, intitulada
Tributo a John Lennon: "Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho,
deixe que eu decida minha vida. Não preciso que me digam, de que lado nasce o
sol, porque bate lá meu coração..."
Nada pessoal contra o cão-guia,
mas realmente preferimos que as pessoas cegas andem sozinhas com o uso da
bengala. Isso custa bem mais barato e pode ser feito imediatamente, basta
apenas vontade política dos nossos governantes. Aliás, é bom que se diga, pelo
que parece, o problema do Brasil não é falta de leis e nem tampouco de
dinheiro. A questão é efetivamente política.
Curitiba, junho de 2012.
As citações estão no Plano Viver Sem Limites,
no regulamento da III Conferência Nacional e no texto que subsidia às
discussões preparatórias a Conferência.
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