segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Manifestação Pública – Contra a flexibilização da “Lei de Cotas”

No dia 15 de Janeiro último, o jornal Folha de São Paulo, no caderno “Mercado”, página B4, publicou a matéria “STF poderá rever regras para deficientes”. Alguns dias depois, o mesmo jornal, em 23 de Janeiro, assinou o editorial “Barreira Burocrática”, caderno “Poder”, página A2, tratando do tema (textos originais em anexo).
Não é de hoje que parte mais atrasada do setor empresarial vem defendendo flexibilizações na chamada “Lei de Cotas” (Lei 8.213/91, posteriormente regulamentada), que reserva um percentual de 2% a 5% das vagas nas empresas com cem ou mais empregados a serem preenchidas por pessoas com deficiência e reabilitados (Lei em anexo).

O conteúdo da matéria e do editorial mencionados acima buscam dar respaldo para o processo de flexibilização da Lei, em sintonia com o discurso dessa parcela do empresariado. Assim sendo, nos parece de suma importância apresentar, de maneira pontual e objetiva, argumentos contrários a este movimento, oriundos da experiência prática de órgãos públicos, sindicatos, associações, ONGs, ativistas sociais, enfim, pessoas com e sem deficiência que atuam cotidianamente com esta questão.
Além disso, os argumentos por nós apresentados têm seu embasamento na legislação vigente e, principalmente, na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela ONU em 2006, ratificada pelo Brasil em 2008 com o status de emenda constitucional e promulgada pelo Executivo Federal por meio do Decreto 6.949/09.
Os seguintes aspectos nos chamaram a atenção e provocaram questionamentos:


1. Embora a matéria fale explicitamente que “o Superior Tribunal Federal (STF) votará nos próximos meses uma ação que poderá instituir a flexibilização das regras para a contratação de deficientes pelas empresas” não há referências a uma única fonte do próprio Tribunal, nem maiores informações sobre o trâmite desta ação, como o Ministro Relator responsável.

2. Deve-se reafirmar que o papel primordial do STF, no sentido contrário, é defender a Constituição e o direito ao trabalho das pessoas com deficiência, grupo populacional historicamente discriminado. O acesso ao trabalho é direito constitucional previsto no Art. 27 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência supracitada;


3. Explica-se na matéria que a ação é movida pelo grupo Pão de Açúcar, que teria sido autuado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) por descumprimento da Lei. Segundo a matéria: “a empresa diz ter cumprido a lei e que foi multada porque só consideraram como deficientes aqueles com atestado do INSS”;

4. Pelo texto, se entende que o MPT considerou como pessoas habilitadas a fazer jus à Lei de Cotas só aqueles com certificado do INSS. Tal afirmação é imprecisa e não condiz com os procedimentos legais ou regimentais para comprovação das condições que definem aqueles que são considerados para fins de cumprimento da Lei. Vejamos:

De acordo com o Decreto Federal 3.298/99, art. 36, que disciplinou a “Lei de Cotas”, observa-se que as vagas reservadas a serem preenchidas se referem:

a) às pessoas portadoras de deficiência habilitadas ou
b) aos beneficiários da Previdência Social reabilitados
Para a identificação de tais pessoas, além do art. 4° deste Decreto (alterado pelo Decreto 5.296/04), os parágrafos 1° a 5° esclarecem que:
1º) considera-se pessoa com deficiência habilitada:

a) aquela que esteja capacitada para o exercício de uma função, ainda que não submetida ao processo de habilitação ou reabilitação; desta forma, a pessoa com deficiência não possui certificado de conclusão de processo de habilitação ou reabilitação profissional fornecido pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS; Neste caso, comprova-se tal condição simplesmente por meio de laudo médico, que pode ser emitido por médico do trabalho da empresa ou qualquer outro médico.

b) aquela que esteja capacitada para o exercício de uma função submetida ao processo de habilitação ou reabilitação; desta forma, a pessoa com deficiência possui certificado de conclusão de processo de habilitação ou reabilitação profissional fornecido pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS.

2º) considera-se pessoa reabilitada aquela submetida ao processo de reabilitação profissional e com certificado de reabilitação profissional fornecido pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS.

5. Em resumo, para a grande maioria dos casos as pessoas com deficiência que fazem jus às cotas comprovam a sua condição apenas com o laudo médico. Eventualmente, se passaram por processos de habilitação ou reabilitação profissional, as pessoas com deficiência terão o certificado fornecido pelo INSS. Mas este é somente exigido obrigatoriamente para o segundo grupo de pessoas beneficiado pela Lei: os reabilitados.

6. Talvez o verdadeiro argumento da ação do grupo Pão de Açúcar, em consonância com setores empresariais, esteja explícito no seguinte trecho da matéria: “a legislação também define os tipos de deficiência, excluindo as consideradas "mais leves" - diferenciação que as empresas consideram "inconstitucional";

7. É preciso deixar claro que os parâmetros que balizam as cotas – Decretos Federais 3.298/99 e 5.296/04 – não excluem “deficiências leves”. Eles apenas caracterizam aquelas condições nas quais, a partir de uma significativa limitação funcional, há desvantagens competitivas e dificuldades adicionais para o pleno acesso ao mercado de trabalho. Sem estes critérios, corre-se o risco de banalizar este instrumento de ação afirmativa;

8. O pior é que, na seqüência, a “inconstitucionalidade” acima mencionada é apresentada como responsável pela queda no número de ocupações formais exercidas por pessoas com deficiência, de 348 mil em 2007 para 306 mil em 2010 (fonte RAIS, Ministério do Trabalho Emprego).

9. O que não consta na matéria, mas é percebido claramente por aqueles que atuam nesta área, é a “preferência” de parte das empresas por pessoas com deficiências “mais leves”, dificultando o acesso, por exemplo, de cadeirantes ou pessoas cegas nos ambientes de trabalho; (ou seja, dupla discriminação, para pessoas com deficiências mais graves);

10. Além das “questões burocráticas” e dos “problemas da legislação”, a matéria abre espaço para outra queixa freqüente de parte do empresariado que não cumpre a Lei: “a falta de pessoas com deficiência e de mão-de-obra qualificada para o preenchimento das vagas”;

11. Embora se reconheça que há um histórico de exclusão escolar responsável por um passivo na formação das pessoas com deficiência, este processo está sendo claramente revertido. Dados do MEC apontam para o aumento no número de matrículas e crescente escolaridade das pessoas com deficiência. Existem também iniciativas – no chamado “Sistema S”, órgãos públicos e empresas privadas – no sentido de promover capacitação profissional e maior qualificação para este segmento (como também para o conjunto da população, cuja qualificação média também não é adequada).

O editorial “Barreira Burocrática”, mesmo que numa forma mais amena e cuidadosa, segue o mesmo estilo “conservador e pró-empresarial” da matéria, reproduzindo equívocos no sentido de respaldar o seu conteúdo e a intenção clara de flexibilizar a Lei.

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Realizada esta avaliação crítica do material jornalístico, concluímos este Manifesto com uma síntese das nossas posições sobre o tema:

a) É precipitado propor flexibilizar a “Lei de Cotas” sem que se conheça a fundo o universo das pessoas com deficiência e/ou limitação funcional a ser divulgado pelo IBGE nos resultados do Censo de 2010 (até o presente momento, se conhece apenas os dados agregados absolutos);
b) No mesmo sentido, é prematuro e perigoso falar em inclusão de “deficiências leves” nas cotas quando ainda está em curso um estudo demandado pela Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (SNDP), vinculado à Secretaria Nacional de Direitos Humanos, junto ao IETS (Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade), com o objetivo de aperfeiçoar a classificação das deficiências;
c) A “Lei de Cotas”, da forma como está hoje, não é a panacéia para resolver a questão da inclusão das pessoas com deficiência no trabalho, mas pior seria sem ela. Não queremos depender eternamente deste instrumento, mas ele se mostrou necessário e ainda é imprescindível para consolidar a cultura de inclusão e valorização da diversidade nos ambientes de trabalho;
d) Reduzir o percentual das cotas, incluir novos grupos ou criar fundos de contribuição para não contratar trariam perdas para o já precário processo de inserção no mercado de trabalho, penalizando as pessoas com maior limitação funcional, justamente aquelas para as quais foi pensado este instrumento de ação afirmativa.
e) Qualquer discussão sobre mudanças na Lei deve passar pelo controle social de instâncias como o CONADE (Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência), em sintonia fina com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.


As pessoas abaixo assinadas colocam-se à disposição para os esclarecimentos que se fizerem necessários e pedem a gentileza de divulgar este Manifesto:
Anahi Guedes de Mello, cientista social, é uma das fundadoras do Centro de Vida Independente de Florianópolis (CVI- Florianópolis)
Antonio Santos Pereira - Membro do CVI Bahia e do Perspectivas em Movimento - Inclusão Artístico e Cultural da Pessoa com Deficiência
Carlos Aparício Clemente – Vice Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e Região e Coordenador do Espaço da Cidadania
Fernando Antonio Pires Montanari – Economista
Ida Célia Palermo - Consultora de Inclusão Social, Presidente do CVI Campinas
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior - médica fisiatra e docente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, integrante do Núcleo Interdisciplinar de Acessibilidade e Inclusão da UFRJ, especialista e consultora na área de políticas públicas de inclusão das pessoas com deficiência. Ex-Secretária nacional da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Kátia Ferraz , Educadora Ambiental, Presidente do CVI-Belo Horizonte
Kátia Fonseca, Jornalista, ativista de Direitos Humanos, conselheiro-consultiva CVI- Campinas
Lilia Pinto Martins – Psicóloga clínica, com experiência profissional no campo da psicologia da reabilitação. Uma das fundadoras e atual presidente do CVI-Rio
Marcio Castro de Aguiar, Fisioterapeuta, Cego, ativista na defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, fundador do CVI- Niterói
Marta Gil – socióloga, consultora na área da Deficiência e Coordenadora Executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas
Melissa Bahia – Consultora na área de Empregabilidade para Pessoas com Deficiência
Roseli Bianco Piantoni – conselheira do CMPD/Campinas – Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência; Conselho Local de Saúde do CRR e Vice Presidente do CVI Campinas
Silvia Pereira de Brito – assistente social, Mestre em Serviço Social pela PUC-SP
Vinicius Gaspar Garcia – economista e pesquisador, co-fundador do CVI- Campinas e diretor de relações institucionais do CVI- Brasil
Centro de Referência em Reabilitação – Prefeitura Municipal de Campinas
Centro de Vida Independente de Campinas (CVI- Campinas)
Conselho Nacional dos Centros de Vida Independente (CVI- Brasil
Centro de Vida Independente Araci Nallin
Flavia Maria de Paiva Vital – Analista de Gestão da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, prestando servilos para Secreteria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência
Eduardo Soares Guimaraens – jornalista, especialista em redes sociais e membro do CVI Araci Nallin´

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