Ricardo Tadeu Marques da Fonseca*
Considerando a grande repercussão social no meio empresarial, judiciário e das próprias pessoas com deficiência, decorrente do argumento reiterado de que as pessoas com deficiência não detêm qualificação para ingressar no mercado de trabalho e de que as empresas não devem suportar este ônus que decorre de ineficiências das políticas públicas, enquanto professor e cidadão que participou da elaboração do texto da Convenção da ONU sobre os direitos da pessoa com deficiência em 2006, não poderia me furtar a oferecer uma manifestação de caráter doutrinário e meramente contributivo relativa ao assunto em pauta, qual seja, a contratação de pessoas com deficiência (PcD) por empresas com 100 e mais empregados.
Vale dizer, antes de mais nada, que a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência trouxe institutos que se caracterizam como instrumentos jurídicos hábeis a tornar concreta a fruição por esse grupo, de cerca de 600 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo a OMS – Organização Mundial da Saúde, de direitos humanos básicos. O mencionado tratado foi ratificado pelo Brasil com aprovação pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de junho de 2008, promulgado pelo Presidente da República por intermédio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, e foi incorporado à Constituição do Brasil (CF, art. 5º. § 3º). Como já pude me pronunciar, em artigo intitulado “O novo conceito constitucional da pessoa com deficiência: um ato de coragem” e que compõe a obra “Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência”[1], bem como a Revista do Tribunal do Trabalho da 2ª Região[2],
“Os impedimentos de caráter físico, mental, intelectual e sensorial são, a meu sentir, atributos, peculiaridades ou predicados pessoais, os quais, em interação com as diversas barreiras sociais, podem excluir as pessoas que os apresentam da participação na vida política, aqui considerada no sentido amplo. As barreiras de que se trata são os aspectos econômicos, culturais, tecnológicos, políticos, arquitetônicos, comunicacionais, enfim, a maneira como os diversos povos percebem aqueles predicados. O que se nota culturalmente é a prevalência da ideia de que toda pessoa surda, cega, paraplégica, amputada ou com qualquer desses impedimentos foge dos padrões universais e por isso tem um “problema” que não diz respeito à coletividade. É com tal paradigma que se quer romper.”
A despeito da consideração de que as empresas agem com boa fé ao adotar os mecanismos usuais para contratação de pessoas com deficiência como anúncios em jornais, buscas em cadastros preexistentes ou formação profissional genérica pelos métodos tradicionais, sem sucesso, esta, a boa fé objetiva, só restaria plenamente demonstrada, ao meu sentir, caso as empresas implementassem programas eficientes de qualificação, inclusive direcionados aos aprendizes com deficiência, tendo em vista que a Lei 11.180/2005, alterando o art. 428 da CLT, possibilita aprendizagem de PcD sem limite de teto etário.
A Lei 12.470/2011, por sua vez, faculta a cumulação do benefício de prestação continuada com o salário de aprendiz por até 2 anos.
Acrescento o consabido fato de que a Lei 10.097/2000 faculta o contrato de aprendizagem com a intermediação de organizações não-governamentais devidamente habilitadas para tanto e de que a formação profissional de PcD tem sido, há décadas, objeto de especialização de entidades formadas de e para pessoas com deficiências, eis que o próprio Estado e as instituições a ele conexas direta ou indiretamente sempre se olvidaram desse grupo vulnerável, insisto, a vulnerabilidade aqui decorre exatamente do isolamento social que até aqui o caracterizou. Desse modo, o afinco dos empregadores voltado à realidade dos fatos no sentido de cumprir não só a Lei 8.213/91, mas o que estabelece a própria Constituição Federal, certamente viabilizaria a contratação dessas pessoas cumprindo as cotas de ordem pública.
Logo, não é crível que a mera exigência de qualificação imposta pelo mercado possa servir de argumento para desonerar a empresa da obrigação que decorre do princípio constitucional contido no artigo 1º concernente ao valor social da livre iniciativa e do trabalho, bem como do artigo 27 da própria Convenção da ONU, que elevou a política afirmativa em questão ao patamar mais elevado do ordenamento pátrio.
A mera publicação de anúncios de oferta de empregos a candidatos com deficiência não pode ser utilizada como argumento para a ausência do preenchimento de tais vagas. Há que se empreender um esforço mínimo para atingir eficazmente a plena igualdade entre essas pessoas, como a seguir será demonstrado.
A atenção aos grupos vulneráveis decorre do princípio universalmente aceito de que todo ser humano nasce livre e igual em dignidade e direitos e, no dizer de Boaventura de Sousa Santos, “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”[3]. O artigo 2 da Convenção, nesse sentido, define, entre outras coisas, a discriminação como se segue:
“Discriminação por motivo de deficiência “significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável;”
Assinalo que a última parte deste item 3 do artigo 2 afirma que a recusa de adaptação razoável configura plenamente a discriminação. A ausência da participação de pessoas com deficiência em locais cotidianos da sociedade, tais como clubes, escolas, empresas e atividades de lazer evidencia essa diferenciação negativa. Quando se constata a recusa em providenciar adaptações necessárias, ainda, também restará evidente a discriminação. Tal conceito é assim definido pela Convenção:
“Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais;”
A palavra “adequado”, obviamente, deve ser interpretada como eficaz, realista, eficiente, etc.. O contrato de aprendizagem por intermédio de organizações qualificadas para e por pessoas com deficiências certamente não é oneroso, eis que o salário do aprendiz é o mínimo/hora, o fundo de garantia é de 2% e se trata de contrato por prazo determinado, necessariamente.
Lembro, ademais, que as empresas em questão, via de regra, necessitam preencher cota de aprendizes, e frequentemente não logram este intento também de ordem pública.
A resistência empresarial para formar, empregar, e consequentemente incluir as pessoas com deficiência no mercado de trabalho, oferecendo-lhes uma vida mais digna e igualitária, é defendida em dois argumentos base, quais sejam, a falta de preparo e a baixa produtividade de tais pessoas. Esses argumentos, todavia, são totalmente falaciosos. Como mencionei no citado artigo, referindo-me aos anos em que atuei como Procurador do Trabalho[4],
“Com efeito, constatei que a adoção de medidas de treinamento das pessoas com deficiência, por intermédio de convênios com os Serviços Nacionais de Aprendizagem, bem como com organizações não governamentais especializadas na formação profissional desses trabalhadores, alcançou pleno êxito. A alta produtividade dos trabalhadores com deficiência é atestada pela unanimidade dos empresários com quem tive contato nos inquéritos que presidi, em audiências públicas ou em eventos que discutiram o tema. Observam os empregadores, igualmente, grande motivação na equipe, que, ao vencer os tabus iniciais, passa a ter os colegas com deficiência como referência de superação e solidarismo. As empresas, finalmente, adicionam a sua imagem institucional grande estima perante os consumidores e o público em geral. Insisto: essa opinião é unânime em relação àquelas empresas que superaram a resistência ao cumprimento da norma.”
Concluo, por todo o exposto, que o conceito atual de pessoa com deficiência, constitucionalmente adotado pelo Brasil por força da ratificação da Convenção Internacional da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, supera o aspecto clínico de cada indivíduo. Assim, traz as limitações para a sociedade, que deve providenciar todas as adaptações necessárias para que tais pessoas exerçam seus direitos da maneira mais efetiva possível. A obrigação da iniciativa privada, portanto, não está apenas em contratar, mas também em criar meios para a preparação técnica das pessoas com deficiência habilitadas e reabilitadas para atender à legislação.
Reitero que o artigo 27 da Convenção da ONU, também norma constitucional, respalda tal argumento, o de que as empresas devem participar do processo de habilitação desses cidadãos por meio do contrato de aprendizagem, antiga e respeitável instituição do ordenamento celetista e certamente operável a baixíssimo custo. Sublinho, finalmente, que a pessoa com deficiência contratada como aprendiz comporá exclusivamente a respectiva cota. Ao cabo da habilitação, passará, só então, efetivamente a compor a cota prevista pela Lei 8.213/91.
Ressalto, para tanto, a necessidade de que se superem as barreiras sociais, políticas, tecnológicas e culturais.
* Ricardo Tadeu Marques da Fonseca – Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná. Professor Universitário, ex-Advogado, ex-Procurador Regional do Ministério Público do Trabalho.
Especialista e Mestre em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo e Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.
[1] FERRAZ, Carolina Valença et. al. (coord.). Manual dos direitos da pessoa com deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 19-32.
[2] Revista do Tribunal do Trabalho da 2a Região, no. 10/2012, pp. 45-54. São Paulo: Tribunal Regional do Trabalho da 2 a. Região.
[3] SOUSA SANTOS, Boaventura de. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de (Org). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 458.
[4] Participei da elaboração de diversos Termos de Ajustamento de Conduta bem sucedidos envolvendo organizações do terceiro setor e o próprio Sistema S, aquelas subsidiando as peculiaridades necessárias para implementação do trabalho deste. Também, convênios apenas com entidades do terceiro setor, devidamente qualificadas para o mister.
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