CRIME AOS DIREITOS HUMANOS
Izabel de Loureiro Maior*
Como se não bastassem as
desavisadas e lesivas opiniões de uma escritora conhecida e de uma psicóloga
desconhecida a respeito do brutal acontecimento contra crianças norte
americanas, somos surpreendidos com uma sentença judicial de esterilização de
uma jovem pobre com alegada deficiência intelectual. Agora pasme! O fato é no
Brasil, no interior de São Paulo e está em vias de se concretizar.
A grande mídia deu espaço a
duas pessoas para que expusessem sandices já rebatidas de forma brilhante por
especialistas, jornalistas e familiares de pessoas com deficiência, vide em
http://www.inclusive.org.br/?p=23982 .
É óbvio que houve grave
prejuízo para as pessoas com deficiência com a “sensibilização às avessas” da
sociedade. Pensar que doença mental é o mesmo que deficiência intelectual e
sendo assim a escola inclusiva não pode existir para não misturar “anjos” com
“demônios” é tudo que não pode prosperar como dúvida nas cabeças brasileiras.
Para deixar claro, o assassino de New Town não tinha diagnóstico médico. Ainda
que fosse uma pessoa com transtorno mental (doença), ou manifestação do
espectro do autismo ou deficiência intelectual, isso não faria com que ele se
tornasse um autor de massacre. O que leva a esse comportamento é uma associação
de fatores pouco conhecida. Dessa forma, as suposições não confirmadas, as
opiniões desvinculadas do conhecimento científico e o sensacionalismo
merecem e tiveram respostas
à altura. No entanto, não soubemos da devida retratação das “autoras” e dos
veículos de comunicação tão responsáveis quanto elas.
Por outro lado, prestando
serviço de interesse público, o jornal “O Estado São Paulo” publicou em
09/01/2013, matéria de William Cardoso. Ainda bem que o fato veio à tona e foi
filtrado e divulgado nas redes dos ativistas do movimento das pessoas com
deficiência. Citando o texto: “A Defensoria Pública tenta reverter uma decisão
judicial que determinou a realização de laqueadura em uma mulher de 27 anos,
sem filhos, moradora de Amparo, no interior paulista. A sentença, de 2004, da
juíza Daniela Faria Romano, veio após uma ação protetiva do Ministério Público
Estadual, que levou em consideração o perfil socioeconômico e o fato de a
mulher sofrer retardamento mental moderado para pedir a esterilização...”
Em minha longa jornada de militante,
de médica fisiatra e professora de medicina e de gestora governamental, tendo
ocupado o cargo de Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, não me recordo de ter tido conhecimento ou enfrentado tamanho
absurdo e afronta aos direitos humanos de uma mulher com deficiência, na
iminência de ser castrada em seus sonhos, seu corpo e seu futuro, por ordem da
INjustiça oficial. A sentença ficou adormecida desde 2004 (se houvesse chegado
a nós naquele momento a história teria tomado outro rumo). A desventura foi
continuada como segue: “Diante da recusa da paciente em substituir o DIU, a
juíza Fabiola Brito do Amaral, que cuida atualmente do caso, determinou em
outubro que fosse cumprida a sentença de 2004. A laqueadura estava prevista
para o dia 21 de dezembro (de 2012), mas a mulher não foi encontrada, porque se
escondeu em outra cidade, por temer que a encontrassem e fizessem a cirurgia
que a impediria de se tornar mãe. Uma nova data será marcada para o
procedimento.”
Tudo indica que uma juíza
brasileira tomou emprestada a Lei Alemã de Esterilização, de 14 de julho de
1933, formalmente “Lei para a prevenção da descendência de pessoas com doenças
genéticas”, entre as quais foram condenadas à esterilização forçada as
“debilidades mentais”, apenas seis meses após a subida de Hitler ao poder.
Nefastos tempos.
Mais intrigante ainda foi
saber que esse ato estapafúrdio continua em vigor ameaçando a jovem de 27 anos,
devido à confirmação de outra juíza, no ano passado. A “culpa” da ré é ser
pessoa com deficiência que deseja ser mãe. A decisão judicial, provocada pelo
Ministério Público, considerou a baixa condição econômica e a necessidade de
medida protetora como
razões suficientes para
ferir e retirar a dignidade de uma mulher pobre com deficiência intelectual.
Desde o nazismo até os
nossos dias os direitos humanos ganharam força e vem sendo, cada vez mais,
invocados para proteger e assegurar que as pessoas tenham liberdade e igualdade
em suas vidas. Com esta finalidade foi criada a Organização das Nações Unidas
(ONU) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
Posteriormente ficou patente
que alguns segmentos sociais necessitavam que a garantia de seus direitos
viesse expressa de forma específica, devido a sua condição histórica de sofrer
diversas formas de discriminação e violação de seus direitos. Nesse perfil
encaixam-se as pessoas com
deficiência.
Desse modo, o mais recente
tratado da ONU é a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de
2006. Sua elaboração tem como pontos de partida o texto da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, as declarações e outros documentos internacionais
voltados para as pessoas com deficiência, as conquistas do movimento político
desse segmento, os avanços da ciência, a noção de que deficiência é um conceito
em evolução e resulta da interação da pessoa com as barreiras da sociedade e o
crescente estímulo à convivência e respeito para com a diversidade humana.
A Convenção contém uma
riqueza de informações e de medidas a serem colocadas em prática, assim como
caracteriza como discriminação atitudes e comportamentos que possam violentar a
condição de pessoa humana daqueles que apresentam alguma deficiência. Seu texto
é fruto da experiência em muitas culturas e de violências vividas em cada parte
do
mundo.
Trabalhei diretamente na
elaboração da Convenção, de 2003
a 2006, interagindo com a diplomacia, as instâncias
governamentais e as organizações das pessoas com deficiência. Tenho orgulho de
tudo fizemos e admiração pelo que a Convenção representa. Confio que ela possa
proteger os meus próprios direitos de mulher com deficiência física.
Graças à soma de esforços, a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no Brasil tem
equivalência à emenda constitucional, de acordo com o Decreto Legislativo nº
186/2008 e Decreto nº 6.949/2009, do Executivo. A Convenção aplica-se
integralmente a toda e qualquer pessoa, a cada ente federado e aos Poderes da
República.
O caso da mulher com
deficiência intelectual do município de Amparo, São Paulo, condenada à esterilização
involuntária preventiva está proibido na Convenção e, portanto, é uma
arbitrariedade que não pode acontecer. Nos artigos 1- propósito, 6 – mulheres
com deficiência, 12 – reconhecimento igual perante a lei, 17 – proteção da
integridade da pessoa e 23 – respeito pelo lar e pela família encontram-se as
razões e proibições certas e diretas para impedir que a jovem brasileira seja
vítima do Estado.
Como se sabe, não é
admissível que juízes e advogados desconheçam as leis e menos ainda que
descumpram a Constituição e os atos com equivalência constitucional, o que é o
caso da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Não se pode
deixar passar que agentes do Estado atuem como se a Convenção não existisse.
A redação final do artigo
23, referente ao respeito pelo lar e pela família, foi alcançada após um dos
debates mais acirrados entre visões de mundo diferentes onde se manifestaram o
Estado do Vaticano (observador na ONU), os países muçulmanos, e muitas nações
entre as quais o Brasil. Defendemos energicamente os direitos sexuais e
reprodutivos das pessoas
com deficiência. Para que
houvesse o consenso, a redação do artigo 23 não apresenta os termos acima, o
que em nada reduz a proteção que está assegurada ao segmento, como se vê:
“1. Os Estados Partes
tomarão medidas efetivas e apropriadas para
eliminar a discriminação
contra pessoas com deficiência, em todos os
aspectos relativos a
casamento, família, paternidade e relacionamentos,
em igualdade de condições
com as demais pessoas, de modo a assegurar
que:
a) Seja reconhecido o
direito das pessoas com deficiência, em idade de
contrair matrimônio, de
casar-se e estabelecer família, com base no livre e
pleno consentimento dos
pretendentes;
b) Sejam reconhecidos os
direitos das pessoas com deficiência de decidir
livre e responsavelmente
sobre o número de filhos e o espaçamento entre
esses filhos e de ter acesso
a informações adequadas à idade e a educação
em matéria de reprodução e
de planejamento familiar, bem como os meios
necessários para exercer
esses direitos.
c) As pessoas com
deficiência, inclusive crianças, conservem sua
fertilidade, em igualdade de
condições com as demais pessoas.”
A simples leitura da
Convenção deixa claro que as juízas e os membros do Ministério Público Estadual
de São Paulo erraram ao agir conforme consta da matéria. Decidir sobre a
integridade física e a fertilidade de alguém da maneira como foi realizado nos
leva a pensar que essas autoridades discriminaram a jovem de Amparo por ser
pobre, ser mulher
e ter deficiência
intelectual. E discriminar uma pessoa com deficiência no Brasil é crime!
Vamos proteger a jovem de
Amparo antes da nova data do procedimento de esterilização. Contamos com a
Defensoria Pública, que merece nosso agradecimento e nossa força para anular a
sentença absurda. Nosso papel de elaboradores da Convenção é exigir das
instâncias jurídicas e administrativas a imediata suspensão e anulação do ato
nazista e eugênico. Cabe ao Estado promover e oferecer os recursos para que
essa jovem mulher com deficiência (e tantas outras) receba todas as informações
e apoios para seguir sua vida e um dia se tornar mãe como é o seu desejo.
Docente da Faculdade de Medicina
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Mestre em Medicina Física e
Reabilitação pela UFRJ. Primeira Secretária Nacional de Promoção dos Direitos
da Pessoa com Deficiência e coordenadora geral da CORDE, da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República, de 2002 a 2010. Representou o
Brasil na ONU na elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e liderou o processo de sua ratificação. Recebeu em 2010 o inédito
prêmio da Organização dos Estados Americanos – OEA, em “Reconhecimento por seu
trabalho para um Continente Inclusivo”. Como consultora, atuou na Comissão
Nacional de Organização da Conferência Rio+20, 2012, primeira conferência da
ONU com acessibilidade.
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