A instituição dessa cota, afirma ela, busca amenizar os efeitos da rejeição, predisposição e mesmo negação do mercado de trabalho em absorver pessoas com deficiência. Leme procurou analisar os discursos de instituições sociais envolvidas com a questão de deficiência e trabalho – empresas, Estado (através de órgãos públicos), terceiro setor e os próprios candidatos com deficiência – de modo a dar visibilidade aos sentidos produzidos por elas sobre o tema. As ações afirmativas, explica, visam favorecer um determinado grupo social que vive em desvantagem, equiparando as suas oportunidades às do restante da população. Conforme Leme, cuja pesquisa foi orientada pela professora da FE Ana Luiza Bustamante Smolka, a questão, no entanto, é mais complexa. A psicóloga observa que os discursos sobre a deficiência construídos ao longo da história determinam que se tenha dos cidadãos com deficiência uma imagem ligada a déficit e incapacidade. “As políticas públicas ainda não têm contemplado essas pessoas como deveriam”, lamenta. “Nas últimas décadas vêm ocorrendo avanços em áreas como educação e trabalho, porém ainda em meio a muitas contradições”, salienta a pesquisadora.
Esse grupo promove encontros regulares em que se discutem modos de consolidar a implementação da lei. Além de fiscalizar seu cumprimento, realizam-se ações educativas junto às empresas tencionando modificar concepções. “Contudo não basta orientar as empresas; é preciso que se produzam novos sentidos sobre a deficiência na sociedade”, argumenta. “As pessoas com deficiência devem ser contempladas por políticas públicas universais, todavia o que ainda ocorre é que o seu atendimento acaba ficando, em grande parte, restrito às instituições filantrópicas ou prossegue com um caráter precário e incipiente.” Leme pontua que os cidadãos com deficiência possuem capacidade de trabalho, desde que tenham acesso à escola e à qualificação profissional.
A psicóloga gravou reuniões do grupo interinstitucional de trabalho e analisou cuidadosamente os vários discursos, as relações entre as diversas instituições, o jogo de forças ali presente e os papéis desempenhados por cada uma. Gravou entrevistas com pessoas com deficiência atendidas em seu trabalho, sempre com as devidas autorizações. Outros discursos registrados foram obtidos em conversas com empresas e mediante palestras e eventos de trabalho. Leme reuniu material audiogravado e por escrito entre 2005 e 2006.
A pesquisadora atua em reabilitação profissional há muitos anos e especificamente com a deficiência desde 1995. Ela explica que a lei 8.213 abrange as deficiências física, visual, auditiva, mental e múltipla, fazendo uma descrição objetiva para o enquadramento dos casos. A física envolve amputações e lesões severas que limitam funcionalmente o desempenho motor. A deficiência visual refere-se à cegueira ou à visão subnormal cuja acuidade visual não ultrapassa 0,3 no melhor olho e com a melhor correção óptica. Já no caso da deficiência auditiva, ela é considerada nas duas orelhas, com um déficit auditivo de 41 decibéis ou mais em quatro frequências. Além dessas deficiências, há a deficiência intelectual e a múltipla, esta última assim caracterizada quando a ela se associam duas ou mais deficiências.
Para aquele que não se enquadra nos critérios da lei, a situação fica mais difícil pois, embora também sofra rejeição pelas empresas, não conta com o amparo legal, nota a psicóloga. Ao longo da pesquisa, ela sentiu-se impactada pela percepção de que esse grupo também excluído do acesso ao trabalho não pode beneficiar-se da lei. Ao atender a uma mulher com visão monocular, que teve um dos olhos enucleado (removido), soube que ela não conseguia arranjar emprego, mesmo tendo concluído o ensino médio, por apresentar uma deficiência. “Não se enquadrando nos critérios legais, não era aceita, o que mostra a contradição intrínseca à própria lei”, aponta.
Um ponto salientado por Leme é a necessidade de uma compreensão mais profunda do discurso que tem sido construído sobre a deficiência ao longo da história – a memória discursiva – e que contribui para mantê-la ainda excluída das políticas públicas. “O Estado deve implementar com qualidade, de maneira universal, as políticas públicas igualmente para a população com deficiência e aqueles sem deficiência. Só que o que ainda vemos, apesar dos avanços na legislação e nas políticas, é uma parte do que deveria ser função do Estado delegada a instituições assistenciais, muitas com origem na filantropia, com tudo o que isso pode significar.”
A psicóloga relata que as instituições recebem subvenção do Estado e fazem um trabalho que julgam ser correto, pautando-se contudo por sua própria conceituação e concepção de homem, de sociedade e de deficiência, que é marcada por sua história de filantropia e assistencialismo. “Está tão naturalizado que caiba a elas a prestação de serviços aos cidadãos com deficiência que o Estado delega essas funções para o terceiro setor. Por que ele persiste eximindo-se de suas obrigações?”, inquieta-se. Para a pesquisadora, essas marcas historicamente constituídas de assistencialismo precisam dar lugar a novos sentidos, de modo a abrir outras perspectivas para esse grupo.
O que mais se evidenciou na análise dos dados foram as contradições, o sim e o não permeando os diversos discursos sobre deficiência e trabalho. “As empresas, ao mesmo tempo em que os empregam, duvidam que eles sejam capazes. Ao mesmo tempo que o Estado implementa leis e executa políticas públicas voltadas à população com deficiência, mantém parcerias com instituições assistenciais filantrópicas”, reconstitui a pesquisadora.
Essas contradições estão presentes no discurso das próprias pessoas com deficiência, comenta ela. “Queremos trabalhar e temos capacidade para isso, ao mesmo tempo que sentimos dúvida e receio”, ou ainda, “para arrumar emprego, precisamos de um certificado que comprove nossa deficiência, mas aí ficamos marcados”, comenta a psicóloga. Ao mesmo tempo que não querem se sentir deficientes, buscam um certificado que garanta o seu acesso ao trabalho, o que faz com que desejem ser deficientes conforme a lei. A tese está repleta deste dualismo. Leme salienta a interconstitutividade dos sujeitos – o discurso mais amplo da sociedade constituindo esses sujeitos. “O imaginário social afeta os próprios cidadãos com deficiência, constituindo-os em meio às contradições”, garante.
O ponto de ancoragem teórica de Leme foi a perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, particularmente as concepções de Vigotski, que fala da constituição social do psiquismo. “Somos constituídos numa cultura em meio a significações.” Esta concepção teórica contribuiu para que a psicóloga compreendesse como as pessoas com deficiência são significados em nossa cultura e como essas significações os afetam e os constituem. Baseou-se ainda em concepções de Bakthin sobre a dimensão ideológica da palavra, a polifonia – as múltiplas vozes contidas no discurso –, e o psiquismo como algo localizado na fronteira entre o organismo e o mundo. “Psiquismo não é somente processo interno. Localiza-se no âmbito onde se negociam as significações.”
Outra teoria que ancorou o trabalho foi a análise do discurso (AD) de linha francesa, em que estudou Pêcheux e Maingueneau. Leme assinala que não fez uma análise de discurso em sentido estrito. Apenas inspirou-se nela para realizar as análises. “A análise do discurso nos alerta para a não-transparência da linguagem. Não é tanto o que se diz que importa e sim o como se diz, os efeitos de sentidos que produzem. Também não é o sujeito o autor de seu discurso. Este é atravessado pelo discurso do outro, que é absorvido e incorporado do discurso mais amplo.”
Com toda a razão a psicóloga Maria Eduarda com referência à visão monocular. Sou um destes e senti na pele essa discriminação. Não era aceito em nenhuma empresa devido ao meu rosto que ficou extremamente modificado(feio) devido ao murchamento de minha vista esquerda após acidente automobilistico. Uso prótese, mas mesmo assim a vista não vira junto com a da direita o que me causa muito constrangimento quando estou em grupo. Só consegui emprego na área pública através de concurso e como não deficiente, pois como a Doutora Maria Eduarda informou não era aceito como deficiente visual já que a lei não me enquadrava. O engraçado, pasmem, é que em vários concursos que fiz como não deficiente(normal)fui reprovado na perícia com a alegação que não poderia exercer a função devido a baixa visão, ou seja, não era aceito como normal nem como deficiente, o que é claro ocorreu em vários empregos privados.
ResponderExcluirParabés a Doutora pelo trabalho.