Romeu Kazumi Sassaki
Programas modificados para a diversidade
Em pleno século XXI, não mais se justifica reproduzirmos programas de educação profissional ou de colocação no mercado de trabalho praticados no Brasil nas décadas de 1960, 1970, 1980 e 1990. Devemos agora modificar esses programas para a diversidade humana, em conformidade com o paradigma da inclusão social, com os requisitos do modelo social da deficiência e com maior aplicação da tecnologia assistiva.
A nova classificação das deficiências
Em 2001, a Organização Mundial de Saúde – OMS publicou a Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde – CIF. O documento foi elaborado, ao longo de seis anos (1995-2000) com base em profundos estudos, rigorosos testes de campo e contínuas alterações – processo no qual estiveram presentes os vários centros de colaboração da OMS, diversos organismos governamentais e organizações não-governamentais, bem como organizações de pessoas com deficiência. O documentofoi finalmente aprovado, por unanimidade, na 54ª Assembleia da OMS, em maio de 2001 (World Health Organisation, 2001).
A importância da CIF reside no fato de que ela permite que os interessados na questão da deficiência passem da simples declaração política sobre direitos para as ações de implementação desses direitos traduzidos em lei e políticas públicas. Na CIF, cada deficiência é apresentada em suas três dimensões ou facetas: impedimento (problema de funcionalidade ou estrutura no nível do corpo), limitações de atividade (problemas de capacidade, no nível pessoal, para executar ações e tarefas, simples ou complexas) e restrições de participação (problemas que uma pessoa enfrenta em seu envolvimento com situações de vida, causados pelo contexto ambiental e social onde essa pessoa vive).
A CIF serve a, pelo menos, cinco tipos de aplicação: em intervenções clínicas, em estatísticas, em desenvolvimento de políticas sociais e em educação. Por abranger os principais domínios da vida humana (lar, família, educação, emprego/trabalho, vida social, política, econômica).
Políticas de educação profissional e colocação no trabalho
Entre os anos de 1997 e 2002, fui consultor de educação profissional inclusiva em dois estados simultaneamente: Paraná e Goiás, tendo como missão orientar equipes de profissionais e colaborar com documentos técnicos a respeito de uma política estadual de emprego para pessoas com deficiência.
O processo de elaboração foi desencadeado por meio de inúmeras reuniões técnicas locais, encontros regionais, palestras, cursos, seminários e fóruns. As discussões foram feitas tanto no sentido vertical (de cima para baixo e vice-versa) como no sentido horizontal (envolvendo entidades, empresas e órgãos públicos em cada município e/ou região). Os fóruns constituíram espaços para os debates de finalização e aprovação de documentos.
Nos dois estados em questão foi organizada, democraticamente, uma espécie de comitê intersetorial, representativo do primeiro setor, do segundo setor e do terceiro setor, obtendo-se assim uma representatividade plena das comunidades e sociedades, capaz de falar por cada estado.
O processo para se chegar aos documentos finais sempre foi pautado pelo paradigma da inclusão social. Segundo este paradigma, cabe à sociedade modificar suas estruturas e seus valores éticos a fim de que se torne capaz de acolher todos os segmentos populacionais que compõem a diversidade humana e todas as diferenças que distinguem uma pessoa da outra. Nenhuma característica ou condição pessoal é aceita como desculpa para que a sociedade possa classificar, rotular e separar certos grupos de pessoas de seus sistemas gerais. Este ponto é fundamental, tornando-se o grande diferencial dos debates e ações inclusivas em comparação com os debates e ações tradicionais, as quais se moldaram pelo paradigma da integração social. Segundo tal paradigma, cabe às pessoas que forem diferentes da maioria da população adaptar-se às normas pré-estabelecidas; cabe-lhes tornarem-se capazes apesar de possuírem esta ou aquela limitação como resultado de deficiências.
De acordo com o novo olhar, este novo prisma, pelo qual devemos construir uma sociedade inclusiva, o tema "empregabilidade e capacitação profissional” precisa ser abordado e implementado abordadonum contexto mais amplo, que extrapola o tema em si.
Ao longo de vários anos e meses, tive o privilégio de participar como consultor nas duas equipes estaduais, ora ensinando e ora aprendendo. Dessa experiência transcrevo uma síntese, divididaem “Empregabilidade”, “Capacitação profissional” e “Barreiras à empregabilidade”.
Empregabilidade
A empregabilidade é hoje um conceito que vai bem além da mera ideia de formação profissional, outrora vigente quando se falava de requisitos para a obtenção de empregos. E, agora, não apenas alargamos nossa visão quanto a esses requisitos, como também damos um novo enfoque ao conceito de empregabilidade.
A empregabilidade não resulta apenas do esforço individual da pessoa com deficiência, que procuraria ser mais qualificada por meiode cursos de capacitação profissional. A empregabilidade dessa pessoa depende também de uma nova postura por parte de outras pessoas à sua volta: familiares, potenciais empregadores, instrutores de escolas profissionalizantes e assim por diante. Neste sentido, a empregabilidade compõe-se de três fatores: COMPETÊNCIA, FUNCIONALIDADE e AUTONOMIA.
A competência envolve CONHECIMENTOS, HABILIDADES e ATITUDES. Os conhecimentos têm a ver com o saber. As habilidades se referem ao saber fazer, que por sua vez nos remete às habilidades básicas, habilidades específicas e habilidades de gestão. E as atitudes refletem o querer saber fazer.
A funcionalidade pode ser demonstrada e utilizada com ou sem o suporte da tecnologia assistiva. Pessoas com deficiência podem precisar valer-se de, por exemplo, cadeiras de rodas, muletas, próteses, órteses, bengalas, andadores, aparelhos auditivos, programas de computador, aparelhos e equipamentos eletrônicos.
A autonomia é a condição de domínio no ambiente físico ou social, preservando ao máximo a privacidade e a dignidade da pessoa que a exerce. A autonomia física de uma pessoa com deficiênciaé maior ou menor dependendo da disponibilidade de tecnologia assistiva e da acessibilidade do meio ambiente. A autonomia social depende do grau de habilidades sociais que a pessoa desenvolva para uma boa convivência na família e na comunidade, mas também a família e a comunidade precisam eliminar noções preconceituosas, estereotipadas e estigmatizadas e atitudes discriminatórias em relação à pessoa com deficiência.
Capacitação profissional
A capacitação profissional, que tem estreita relação com os fatores de empregabilidade anteriormenteexplicados, não mais poderá ser tratada como uma mera preparação profissional. Não mais defendemos a ideia de simplesmente abrir vagas nas escolas profissionalizantes para que um maior número de pessoas com deficiência possa profissionalizar-se. Esta forma de tratamento da questão da capacitação profissional se restringe à prática tradicional, ou seja, as ações se limitam a ‘encaixar’ algumas pessoas com deficiência nos cursos existentes, sem modificá-los. Esta abordagem obedece ao modelo médico da deficiência, segundo o qual a pessoa com deficiência é vista como um problema a ser sanado antes de ser inserida na sociedade. Esta abordagem segue o paradigma da integração social, ou seja, quem tem o problema da exclusão (segregação, rejeição) é a pessoa com deficiência e não a sociedade.
Hoje defendemos uma capacitação profissional irrestrita, voltada à diversidade humana. Isto significa dizer que os cursos existentes e os cursos futuros deverão adaptar-se ao perfil do novo alunado, este alunado que reflete a diversidade humana. Esta abordagem se inspira no modelo social da deficiência, segundo o qual é a sociedade que tem o problema da exclusão, é ela que causou as deficiências e é ela que deve eliminar todos os fatores incapacitantes e excludentes que estão nos sistemas sociais gerais. Esta abordagem segue o paradigma da inclusão social. Ou seja, é a sociedade que deve adequar-se às necessidades e habilidades das pessoas e não o inverso.
Barreiras à empregabilidade
As barreiras à empregabilidade das pessoas com deficiência estão espalhadas. Elas podem estar na própria pessoa com deficiência e nos seus familiares, bem como nos empregadores e potenciais colegas de trabalho. E podem estar no espaço urbano, nas edificações e nos transportes, bem como nas metodologias, nos instrumentos, na comunicação e nos programas e políticas.
- Barreiras na pessoa com deficiência: constituem este grupo debarreiras a baixa escolaridade, a baixa qualificação profissional, a precária tecnologia assistiva a que a pessoa com deficiência pode ter acessoe as atitudes negativas que a própria pessoa com deficiência pode apresentar sobre si mesma, as outras pessoas, a sociedade etc. A solução para estas barreiras está na sensibilização, conscientização e informação.
- Barreiras nos empregadores e colegas de trabalho: constituem estasbarreiras as noções preconceituosas, estigmatizadas e estereotipadas, as atitudes discriminatórias, a desinformação e a falta de informação. A solução para estas barreiras também está na sensibilização, conscientização e informação.
- Barreiras na comunidade: entre estasbarreiras encontram-seo transporte coletivo inacessível e os obstáculos existentes nas edificações e no espaço urbano. A solução está na aplicação das normas de acessibilidade aos projetos de futuros veículos, edifícios e espaços urbanos.
- Barreiras nas empresas: constituem barreiras nas empresaso ambiente físico, as metodologias e os instrumentos, cuja solução está nas adaptações.
São ainda barreiras as formas de comunicação, cuja solução está no aprendizado e na disponibilização de todas as formas de comunicação: oral, escrita, em braile, por língua de sinais, caracteres ampliados etc; e finalmente a barreira programática, presente em políticas, regimentos, normas, leis e outros dispositivos que procuram ordenar condutas, programas, serviços e atividades, sendo uma solução a revisão de todos os documentos de normatização.
Acessibilidade nas empresas inclusivas
O termo ‘acessibilidade’ começou a ser utilizado com muita frequência, nos últimos anos, em assuntos de reabilitação, saúde, educação, transporte, mercado de trabalho e ambientes físicos internos e externos. Historicamente, a origem do uso desse termo, para se referir àcondição de acesso arquitetônico das pessoas com deficiência, está no surgimento dos serviços de reabilitação física e profissional, ocorrido no final da década de 1940.
Na década de 1950, com a prática da reintegração de adultos reabilitados, ocorrida na própria família, no mercado de trabalho e na comunidade em geral, profissionais de reabilitação constatavam que essa prática era dificultada e até impedida pela existência de barreiras físicas nos espaços urbanos, nos edifícios e residências e nos meios de transporte coletivo. Surgia assim a fase da integração, que duraria cerca de quarenta anos até ser substituída gradativamente pela fase da inclusão.
Na década de 1960, algumas universidades americanas iniciaram as primeiras experiências de eliminação de barreiras arquitetônicas existentes em seus recintos: áreas externas, estacionamentos, salas de aula, laboratórios, bibliotecas, lanchonetes etc.
Na década de 1970, graças ao surgimento do primeiro centro de vida independente – CVIdo mundo, na cidade de Berkeley, Califórnia, EUA, aumentaram a preocupação e os debates sobre a eliminação de barreiras arquitetônicas, bem como a operacionalização das soluções idealizadas.
Na década de 1980, impulsionado pelo Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981), o segmento de pessoas com deficiência desenvolveu verdadeiras campanhas, em âmbito mundial, para alertar a sociedade a respeito das barreiras arquitetônicas e exigir não apenas a eliminação delas (com odesenho adaptável) como também a não-inserção de barreiras já nos projetos arquitetônicos em desenvolvimento(com odesenho acessível). No desenho adaptável, a preocupação está em adaptar os ambientes obstrutivos, portanto já existentes. No desenho acessível, a preocupação está em exigir que os arquitetos, engenheiros, urbanistas e desenhistas industriais não incorporem elementos obstrutivos nos projetos de construção de novosambientes e utensílios. Tanto no desenho adaptável como no acessível, o beneficiado específico é a pessoa com deficiência.
Na década de 1990, começou a ficar cada vez claro que a acessibilidade deverá seguir o paradigma do desenho universal, segundo o qual os ambientes, os meios de transporte e os utensílios devem ser projetados para todos; portanto, não apenas para pessoas com deficiência. E, com o advento do paradigma da inclusão e do conceito de que a diversidade humana deve ser acolhida e valorizada em todos os setores sociais comuns, hoje entendemos que a acessibilidade não mais se restringe ao aspecto arquitetônico, pois existem barreiras de vários tipos também em outros contextos que não o do ambiente arquitetônico. Podemos, por exemplo, dizer que uma empresa inclusiva é aquela que está implementando gradativamente as medidas de acessibilidade nos seis contextos apresentados mais adiante.
Assim, os Seis Tipos de Acessibilidade nas Empresas Inclusivas deverão existir também em todos os outros ambientes internos e externos ondequalquer pessoa, com ou sem deficiência, tem o direito de circular. Suas respectivas características, hoje obrigatórias por lei e/ou por consequência do paradigma da inclusão, são as seguintes, no caso das empresas inclusivas:
- Acessibilidade arquitetônica: sem barreiras ambientais físicas, no interior e no entorno dos escritórios e fábricas e nos meios de transporte coletivo utilizados pelas empresas para seus funcionários.
- Acessibilidade comunicacional: sem barreiras na comunicação interpessoal (face-a-face, língua de sinais, linguagem corporal, linguagem gestual etc.), na comunicação escrita (jornal, revista, livro, carta, apostila etc., incluindo textos em braile, textos com letras ampliadas para quem tem baixa visão, notebook e outras tecnologias assistivas para comunicar) e na comunicação virtual (acessibilidade digital).
- Acessibilidade metodológica: sem barreiras nos métodos e técnicas de trabalho (métodos e técnicas de treinamento e desenvolvimento de recursos humanos, execução de tarefas, ergonomia, novo conceito de fluxograma, empoderamento etc.).
- Acessibilidade instrumental: sem barreiras nos instrumentos e utensílios de trabalho (ferramentas, máquinas, equipamentos, lápis, caneta, teclado de computador etc.).
- Acessibilidade programática: sem barreiras invisíveis embutidas em políticas (leis, decretos, portarias, resoluções, ordens de serviço, regulamentos etc.).
- Acessibilidade atitudinal: sem preconceitos, estigmas, estereótipos e discriminações, como resultado de programas e práticas de sensibilização e de conscientização dos trabalhadores em geral e da convivência na diversidade humana nos locais de trabalho.
Observação: a acessibilidade tecnológica não constitui outro tipo de acessibilidade e sim o aspecto tecnológico que permeia as seis acessibilidades.
Os profissionais de gestão de pessoas
As empresas públicas e privadas estão sendo desafiadas a implantar projeto ou programa que assegure o acolhimento à diversidade humana nos locais de trabalho. Tal medida se torna um imperativo, em consequência da legislação federal pertinente à acessibilidade. Acima de tudo, esse projeto constitui uma prática resultante do reconhecimento de que a diversidade humana comprovou ser um fator estratégico no desenvolvimento de empresas mais criativas, competitivas e socialmente responsáveis.
Com relação aos segmentos populacionais tradicionalmente excluídos, esta prática traz no seu bojo o reconhecimento de que também eles têm direito de acesso às oportunidades de trabalho. Dentre esses excluídos estão as pessoas que têm deficiência de algum tipo (dentro do conjuntodas categorias: deficiência física, deficiência intelectual, deficiência auditiva, deficiência visual ou deficiência múltipla), seja este de origem congênita ou então adquirida em consequência de acidentes, doenças e outras causas.
Uma boa parte dessas pessoas está conseguindo empregar-se graças à implantação de um programa de apoio à diversidade na força de trabalho, hoje uma realidade em milhares de empresas, em especial naquelas comprometidas com o paradigma da inclusão social. Trata-se, basicamente, de um processo que visa a recrutar, selecionar, contratar, treinar e promover pessoas com deficiência nos locais de trabalho a fim de garantir uma alocaçãoprofissional bem-sucedida tanto para os candidatos como para as empresas.
Neste processo, os profissionais de recursos humanos se destacam como um importante intermediador entre a empresa e a pessoa com deficiência, cabendo-lhes tomar medidas que assegure para ambas as partes o melhor resultado possível.
Obediência (cotas) ou consciência (não-discriminação)?
No debate que se trava em todo o Brasil em torno da Lei n. 8.213, de 25 de julho de 1991, conhecida como a Lei de Cotas, várias posições vêm sendo tomadas. Duas delas, com as respectivas consequências, se destacam: 1) Esta lei é a solução para acabarmos com o problema da não-contratação de pessoas com deficiência no mercado de trabalho; consequência: as empresas devem obedecer às determinações da lei e ser penalizadas se não as cumprirem. 2) Esta lei traz no seu bojo os princípios da discriminação às avessas (Martins, 1996) e da coerção, além de não resolver o problema da não-contratação de pessoas com deficiência (Clemente, 2003); consequência: as empresas devem ser conscientizadas sobre os benefícios da diversidade humana na força de trabalho, os princípios da equiparação de oportunidades e os fundamentos da responsabilidade social.
Quando apenas a primeira posição (cumprimento da Lei de Cotas) é valorizada, corremos o risco de condicionar a sociedade (e o mercado de trabalho) a concluir que, se cumprida a Lei de Cotas, nada mais será necessário fazer em relação à empregabilidade das pessoas com deficiência. Outras implicações da primeira posição podem ser traduzidas nos seguintes termos: o princípio das cotas é incompatível com o princípio da igualdade política dos cidadãos, muitas empresas simplesmente burlam a Lei de Cotas, várias empresas alegam que precisariam demitir empregados não-deficientes para contratar pessoas com deficiência, muitos empregadoresacreditam que as pessoas com deficiência não têm condições físicas, intelectuais ou sensoriais para ocupar as vagas disponíveis etc.
Quando se prioriza a segunda posição, (implementação dos princípios de não-discriminação), recebemos empregadores que desejam aprender a respeito das pessoas com deficiência e lhes oferecemos esse aprendizado por meiode palestras, seminários, consultorias e monitoramento. Desse aprendizado nasce a consciência que leva os empregadores a buscar e/ou receber candidatos com deficiência nosquadros da empresa, a reconheceros benefícios da diversidade humana na força de trabalho, os princípios da equiparação de oportunidades e os fundamentos da responsabilidade social.
FONTE: Revista Nacional de Tecnologia Assistiva
FONTE: Revista Nacional de Tecnologia Assistiva
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