terça-feira, 13 de agosto de 2013

Inclusão Radical - por Manuel Vasquez Gil

Na última década, o país registrou uma evolução significativa na política de inclusão das crianças com deficiência em escolas de ensino regular. Entre 1998 e 2010, o aumento no número de alunos especiais matriculados em escolas comuns foi de 1.000%. Em 1998, dos 337,3 mil alunos contabilizados em educação especial, apenas 43,9 mil (ou 13%) estavam matriculados em escolas regulares ou classes comuns. Em 2010, dos 702,6 mil estudantes na mesma condição, 484,3 mil (ou 69%) frequentavam a escola regular. Em contrapartida, o percentual de estudantes matriculados em escolas especializadas e classes especiais caiu no período. Se, em 1998, 87% (o equivalente a 293,4 mil) se enquadravam nesse perfil, a taxa foi reduzida a 31% (o que corresponde a 218,2 mil) do universo total de 2010.
A recente aprovação da lei 12.764/12 acrescentou lenha desnecessária a uma fogueira que já estava extinta: o Fundeb reconhecer a dupla matrícula, aceitava pagar a dupla matrícula às instituições filantrópicas que trabalhassem no serviço complementar (a criança estuda numa escola regular, faz o complemento numa dessas instituições e o governo paga), e não se tinha notícias de que surdos, mudos, cegos ou cadeirantes quisessem uma escola só para si. 
O que impacta nessa retomada de luta é que a lei do autismo já trazia embutida em si a filosofia da inclusão na escola regular, na medida em que colocava a exigência de moderador na sala de aula. O que terá levado alguns personagens do movimento a iniciar uma grande marola exigindo escolas especiais para autistas? Por que uma criança cuja principal característica é a dificuldade de socialização deve ficar circunscrita a um espaço onde não pode conviver com a sociedade real, com a qual cruza no corredor do prédio, na rua do bairro, no supermercado, padaria, farmácia?
Alguns dizem que a inclusão não pode ser radical. Se seu filho for discriminado na rua, no prédio, no supermercado, padaria, farmácia, você o leva de volta pra casa e espera que as pessoas se capacitem para conviver com ele, ou faz, ali mesmo, uma inclusão radical?
A APAE nasceu em 1954, no Rio de Janeiro, e logo se espalhou pelo Brasil como uma instituição de excelência nos cuidados com crianças e jovens mongoloides. Apenas em 1961 o termo “mongolismo” ganhou a denominação de Síndrome de Down. Durante décadas, fez um trabalho exemplar, tão bom que conseguiu reduzir ao mínimo não só o preconceito que girava em torno dessas crianças, como a incidência da síndrome em si. Toda instituição que se dedica ao tratamento de uma deficiência é autodestrutiva por natureza: só consegue o sucesso se reduzir os clientes, e a APAE fez isso muito bem.
Com a estrutura gigante e a redução de clientes, ela se voltou a outros públicos e começou a admitir autistas. Espera-se que faça também com eles o mesmo trabalho bom. O que aconteceu, entretanto, é que, tanto a APAE quanto as autodenominadas “escolas especiais” não eram escolas, não tinham registro no MEC nem eram regulamentadas nas Secretarias da Educação. Sendo unidades terapêuticas infanto-juvenis, seria lógico que tivessem espaços pedagógicos, mas não se preocuparam em regulamentar a situação. Desse modo, as crianças que estudavam nas “escolas especiais” ficavam, legalmente, fora da escola e faziam parte das estatísticas negativas da educação no Brasil.
O mundo moderno exige toda criança na escola, e o governo federal investiu em leis e procedimentos que levassem o país a esse patamar. Toda criança significa toda, sem exceção, chegando ao limite de, se a criança não puder ir à escola, por motivos médicos sérios, a escola deve ir à criança. Para que toda criança esteja na escola, a inclusão é necessária e deve ser radical. Seguindo protocolos e documentos da ONU e da UNESCO, assinados em Salamanca e na Guatemala, leis foram criadas e aprovadas, onde o item básico e impreterível era: nenhum gestor escolar negará a matrícula a nenhuma criança, em função da sua condição ou deficiência. Uma diretriz que, por si só, bastaria para a inclusão universal.
Organizações que mantém as chamadas escolas especiais não se contentaram com as regras, e argumentam que o governo quer extingui-las. Ora, como um governo que cria o Fundeb e se compromete legalmente a pagar a matrícula dupla pode ser acusado de tal intento? O que o governo decidiu, e decidiu corretamente, é que essas instituições serão complementares à escola e não a substituirão. Veja, pelo histórico, que há razões de sobra para esse posicionamento.
Vale conhecer o posicionamento do MEC: a assessoria de imprensa do Ministério esclarece que, se o estudante cursa a educação especial em uma escola regular da rede pública e recebe o Atendimento Educacional Especializado (AEE) na mesma escola, essa escola recebe o recurso do Fundeb (relativo àquele aluno) duas vezes. No caso de o estudante cursar a educação especial em escola regular da rede pública e receber o AEE em outra instituição do sistema público de ensino, ou em instituição comunitária, confessional ou filantrópica sem fim lucrativo, com atuação exclusiva na educação especial, conveniada com o poder público, a escola regular pública recebe uma vez por esse estudante e a instituição que oferta o AEE recebe também, pelo mesmo estudante. E, por último, se o aluno estuda apenas em instituição do sistema público de ensino, ou em instituição comunitária, confessional ou filantrópica sem fim lucrativo, com atuação exclusiva na educação especial, essa instituição recebe apenas uma vez.
Veja o que pega: o MEC se dispõe a pagar pelo aluno que estiver matriculado em instituição comunitária, confessional ou filantrópica sem fim lucrativo, com atuação EXCLUSIVA na educação especial. Ou seja: chega de entidades terapêuticas fingindo-se de escolas especiais.
Deixo uma provocação: a nossa Constituição garante escola obrigatória para todos e, para que essa diretriz seja cumprida exige que nenhum gestor escolar recuse a matrícula por causa da condição da criança. Tenho um filho deficiente e outro não deficiente. O que acontecerá se eu resolver matricular ambos na escola especial? O gestor pode recusar a matrícula? 
Acho que tive uma ideia.


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