sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Artigo - A trajetória das pessoas com deficiência na História – Luta contra a invisibilidade, pela construção da cidadania

Título: A trajetória das pessoas com deficiência na História – Luta contra a invisibilidade, pela construção da cidadania.
Autor: Vinicius Gaspar Garcia
Data: 25/02/2011
Biografia resumida do autor: Pesquisador e economista, doutor em Economia Social e do Trabalho pelo Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Militante do movimento social das pessoas com deficiência, tendo sido um dos fundadores da ONG CVI-Campinas (Centro de Vida Independente de Campinas), gerida pelas próprias pessoas com deficiência.
Resumo do artigo: O artigo busca, na primeira seção, discorrer sobre a trajetória histórica de luta pela sobrevivência e cidadania das pessoas com deficiência, cuja marca mais forte foi a superação da invisibilidade. Podendo “falar por si mesmo”, estas pessoas contribuíram para a criação de uma série de leis que lhes dizem respeito. Assim, na segunda parte do estudo, apresenta-se um painel crítico de legislações nacionais selecionadas, com destaque para a “política nacional de integração”, as vagas reservadas nos concursos públicos e as cotas no setor privado. Uma breve discussão sobre o Ano Internacional da Pessoa Deficiente, 1981, faz o elo entre as duas seções do artigo, pois ele representa a passagem do passado de invisibilidade ou tutela para o presente (e futuro) de mobilização sócio-política das pessoas com deficiência. As considerações finais tratam, de maneira bastante objetiva, dos desafios que se colocam para a plena inclusão social deste contingente populacional.

Palavras-chave: Pessoas com deficiência; Contexto Histórico; Legislações e Cidadania.

Introdução
O presente artigo tem como primeiro objetivo pontuar aspectos históricos que ilustram a trajetória das pessoas com deficiência. Esta tarefa será pautada, fundamentalmente, por duas obras que se preocuparam com esta temática, sobre a qual ainda hoje não existe um aprofundamento maior. Trata-se da “Epopéia Ignorada – A História da Pessoa Deficiente no Mundo de Ontem e de Hoje”, escrita por Otto Marques da Silva em 1987; e “Caminhando em Silêncio – Uma introdução à trajetória das pessoas com deficiência na História do Brasil”, de Emílio Figueira, publicada em 2008. Os títulos sugestivos desses trabalhos, realizados com um intervalo de praticamente vinte anos, revelam uma característica marcante do que foi a luta pela sobrevivência e cidadania deste grupo populacional: a superação da invisibilidade.
O Ano Internacional da Pessoa Deficiente (AIPD), 1981, é um marco histórico importante no movimento de auto-afirmação deste segmento. É claro que “a história não começou” em 1981, mas foi a partir dali que se formou uma identidade de interesses e aspirações coletivas das pessoas com deficiência enquanto grupo social organizado no Brasil e em outros países.
Na esteira do AIPD, e do próprio contexto de redemocratização do país, a partir dos anos 80 (e da Constituição de 1988), criam-se leis e decretos que definem direitos variados das pessoas com deficiência. Assim, na segunda parte do artigo a idéia é formar um painel com base num conjunto representativo de normas jurídicas. Em particular, nossas referências principais serão: a) a Lei 7.853/89 e o Decreto 3.298/99 (que definiram uma “política nacional de integração da pessoa portadora de deficiência); e b) a reserva de vagas nos concursos públicos (Lei 8.122/90) e as cotas no setor privado (Lei 8.213/91).
Ao final, amparados pelo contexto histórico e por uma visão crítica de parte do arcabouço jurídico que respalda as pessoas com deficiência no Brasil, discutem-se perspectivas futuras e desafios para acelerar a inclusão social deste grupo populacional. Argumenta-se também que, por mais que existam especificidades, obviamente não há um mundo específico das pessoas com deficiência. Ou seja, elas também se beneficiarão do avanço social do país: diminuição do desemprego, melhora nos serviços públicos em educação e saúde, planejamento urbano-ambiental, dentre outros aspectos.

1 – O contexto histórico, a luta pela sobrevivência e o Ano Internacional da Pessoa Deficiente (AIPD)

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que o percurso histórico no qual, gradativamente, pessoas com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas foram sendo incorporadas ao tecido ou estrutura social é um processo errático, não-linear e marcado, invariavelmente, por trajetórias individuais. Não se pode visualizar um movimento contínuo e homogêneo de integração, pois os sentimentos e a maneira pela qual a sociedade enxergava as pessoas com deficiência variavam também de um país para outro num mesmo período. Durante o século XX, por exemplo, pessoas com deficiência foram submetidas a “experiências científicas” na Alemanha nazista de Hitler. Ao mesmo tempo, mutilados de guerra eram considerados heróis em países como os EUA, recebendo honrarias e tratamento em instituições do governo.
Mesmo assim, utilizando como referência o clássico trabalho de Silva (1987), vale a pena descrever, de maneira bastante objetiva, aquilo que este autor chamou de “epopéia ignorada”, ou seja, a trajetória das pessoas com deficiência desde os primeiros registros históricos. Na seqüência, este caminhar será feito na História do Brasil, através da contribuição recente de Figueira (2008). Ao final desta seção, discute-se brevemente a importância do AIPD como marco histórico do movimento social das pessoas com deficiência.

A “epopéia ignorada” das pessoas com deficiência na História Mundial

As pessoas com deficiência, via de regra, receberam dois tipos de tratamento quando se observa a História Antiga e Medieval: a rejeição e eliminação sumária, de um lado, e a proteção assistencialista e piedosa, de outro. Na Roma Antiga, tanto os nobres como os plebeus tinham permissão para sacrificar os filhos que nasciam com algum tipo de deficiência. Da mesma forma, em Esparta, os bebês e as pessoas que adquiriam alguma deficiência eram lançados ao mar ou em precipícios. Já em Atenas, influenciados por Aristóteles – que definiu a premissa jurídica até hoje aceita de que “tratar os desiguais de maneira igual constitui-se em injustiça” – os deficientes eram amparados e protegidos pela sociedade.
Silva (1987) descreve inúmeros episódios e/ou referências históricas aludindo ao contingente de pessoas com deficiência. Não cabe aqui reproduzir esta narrativa, que parte da História Antiga e termina já no final do século XX. Mas é interessante realçar alguns aspectos trabalhados por este autor na “epopéia ignorada” das pessoas com deficiência ao longo da História.
O primeiro deles diz respeito à constatação de que sempre existiram na História indivíduos com algum tipo de limitação física, sensorial ou cognitiva. Como afirma Silva (1987): “anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações traumáticas, doenças graves e de conseqüências incapacitantes, sejam elas de natureza transitória ou permanente, são tão antigas quanto a própria humanidade” (Silva, 1987, p. 21). Esta afirmação, que pode parecer óbvia ou desnecessária, é válida no sentido de reconhecer que nos grupos humanos, desde o mundo primitivo até os dias atuais, sempre houve pessoas que nasceram com alguma limitação ou durante a vida deixaram de andar, ouvir ou enxergar. Tragicamente, durante muitos séculos, a existência destas pessoas foi ignorada por um sentimento de indiferença e preconceito nas mais diversas sociedades e culturas; mas elas, de uma forma ou de outra, sobreviveram.
A partir de 2.500 a.C., com o aparecimento da escrita no Egito Antigo, há indicativos mais seguros quanto à existência e às formas de sobrevivência de indivíduos com deficiência. Dentre os povos da chamada História Antiga, os egípcios são aqueles cujos registros são mais remotos. Os remanescentes das múmias, os papiros e a arte dos egípcios apresentam-nos indícios muito claros não só da antiguidade de alguns “males incapacitantes”, como também das diferentes formas de tratamento que possibilitaram a vida de indivíduos com algum grau de limitação física, intelectual ou sensorial.
Silva (1987) cita, por exemplo, a Escola de Anatomia da cidade de Alexandria, que existiu no período de 300 a.C. Dela ficaram registros da medicina egípcia utilizada para o tratamento de males que afetavam os ossos e os olhos das pessoas adultas. Existem até passagens históricas que fazem referência aos cegos do Egito e ao seu trabalho em atividades artesanais. As famosas múmias do Egito, que permitiam a conservação dos corpos por muitos anos, possibilitaram o estudo dos restos mortais de faraós e nobres do Egito que apresentavam distrofias e limitações físicas, como Sipthah (séc. XIII a.C.) e Amon (séc. XI a.C.). Dada a fertilidade das terras e as diferentes possibilidades de trabalho, não é difícil imaginar alternativas para ocupação das pessoas com deficiência no Egito Antigo.
Na Grécia Antiga, particularmente em Esparta, cidade-estado cuja marca principal era o militarismo, as amputações traumáticas das mãos, braços e pernas ocorriam com freqüência no campo de batalha. Dessa forma, identifica-se facilmente um grupo de pessoas que adquiriu uma deficiência e permaneceu vivo. Por outro lado, o costume espartano de lançar crianças com deficiência em um precipício tornou-se amplamente conhecido por aqueles que estudaram este tema numa perspectiva histórica.
De acordo com registros existentes, de fato, o pai de qualquer recém-nascido das famílias conhecidas como homoio (ou seja, “os iguais”) deveria apresentar seu filho a um Conselho de Espartanos, independentemente da deficiência ou não. Se esta comissão de sábios avaliasse que o bebê era normal e forte, ele era devolvido ao pai, que tinha a obrigação de cuidá-lo até os sete anos; depois, o Estado tomava para si esta responsabilidade e dirigia a educação da criança para a arte de guerrear. No entanto, se a criança parecia “feia, disforme e franzina”, indicando algum tipo de limitação física, os anciãos ficavam com a criança e, em nome do Estado, a levavam para um local conhecido como Apothetai (que significa “depósitos”). Tratava-se de um abismo onde a criança era jogada, “pois tinham a opinião de que não era bom nem para a criança nem para a república que ela vivesse, visto que, desde o nascimento, não se mostrava bem constituída para ser forte, sã e rija durante toda a vida” (Licurgo de Plutarco apud Silva, 1987, p. 105).
Esta prática deve ser entendida, naturalmente, de acordo com a realidade histórica e social da época. É claro que hoje nos parece algo repugnante e cruel, mas na cidade-estado de Esparta, no ano de 400 a.C., tal conduta “justificava-se” para o bem da própria criança e para a sobrevivência da república, onde a maioria dos cidadãos deveria se tornar guerreiros. Em outros estratos sociais que não os homoio esse tipo de restrição não ocorria, podendo haver a sobrevivência de uma criança “defeituosa”, como no caso dos periecos, dedicados aos trabalhos da lavoura e do gado.
Diferentemente da Grécia Antiga e do Egito, no que diz respeito a pessoas com deficiência, não é fácil localizar referências precisas ao tema na Roma Antiga. Mas existem citações, textos jurídicos e mesmo obras de arte que aludem a essa população. Assim como ocorria em Esparta, o direito Romano não reconhecia a vitalidade de bebês nascidos precocemente ou com características “defeituosas”. Entretanto, o costume não se voltava, necessariamente, para a execução sumária da criança (embora isso também ocorresse). De acordo com o poder paterno vigente entre as famílias nobres romanas, havia uma alternativa para os pais: deixar as crianças nas margens dos rios ou locais sagrados, onde eventualmente pudessem ser acolhidas por famílias da plebe (escravos ou pessoas empobrecidas).
A utilização comercial de pessoas com deficiência para fins de prostituição ou entretenimento das pessoas ricas manifesta-se, talvez pela primeira vez, na Roma Antiga. Segundo o Silva (1987): “cegos, surdos, deficientes mentais, deficientes físicos e outros tipos de pessoas nascidos com má formação eram também, de quando em quando, ligados a casas comerciais, tavernas e bordéis; bem como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezes humilhantes” (Silva, 1987, p. 130). Tragicamente, esta prática repetiu-se várias vezes na história, não só em Roma.
O advento do Cristianismo significou, em diferentes aspectos, uma mudança na forma pela qual as pessoas com deficiência eram vistas e tratadas pela sociedade em geral. É claro que, como alertamos no início desta seção, este não é um processo linear e homogêneo, de maneira que estamos apenas apresentando algumas tendências gerais, sem ter a pretensão de definir com a exatidão histórica, a cada momento, a situação das pessoas com deficiência (que é um grupo heterogêneo entre si).
Feita esta ressalva, podemos afirmar que, de maneira geral, a mudança acima referida deveu-se ao próprio conteúdo da doutrina cristã, que foi sendo difundida a partir de um pequeno grupo de homens simples, num momento em que o Império Romano estava com seu poderio militar e geopolítico consolidado. Entretanto, Silva (1987) chama atenção para o “lamentável estado moral da sociedade romana”, especialmente da nobreza, que demonstrava total falta de preocupação com a proliferação de doenças e o crescimento da pobreza e da miserabilidade dentre boa parte da população.
Nesse contexto, vai ganhando força o conteúdo da doutrina cristã, voltado para a caridade, humildade, amor ao próximo, para o perdão das ofensas, para a valorização e compreensão da pobreza e da simplicidade da vida. Estes princípios encontraram respaldo na vida de uma população marginalizada e desfavorecida, dentro da qual estavam aqueles que eram vítimas de doenças crônicas, de defeitos físicos ou de problemas mentais.
A influência cristã e seus princípios de caridade e amor ao próximo contribuíram, em particular a partir do século IV, para a criação de hospitais voltados para o atendimento dos pobres e marginalizados, dentre os quais indivíduos com algum tipo de deficiência. No século seguinte, o concílio da Calcedônia (em 451) aprovou a diretriz que determinava expressamente aos bispos e outros párocos a responsabilidade de organizar e prestar assistência aos pobres e enfermos das suas comunidades. Desta forma, foram criadas instituições de caridade e auxílio em diferentes regiões, como o hospital para pobres e incapazes na cidade de Lyon, construído pelo rei franco Childebert no ano de 542 (Silva, 1987).
Interessante notar que, ao mesmo tempo em que avança um tratamento, ao menos, caridoso em relação aos deficientes, a Igreja Católica continuava reafirmando a impossibilidade de que eles atuassem como padres. Segundo historiadores, “já nos chamados Cânones Apostolorum, cuja antiguidade exata todos desconhecem e que, no entanto, foram elaborados no correr dos três primeiros séculos da Era Cristã, existem restrições claras ao sacerdócio para aqueles candidatos que tinham certas mutilações ou deformidades” (Silva, 1987, p. 166). Gelásio I, papa que reinou entre 492 a 496, reafirmou a orientação contrária à aceitação de sacerdotes com deficiência, ao afirmar que os postulantes não poderiam ser analfabetos nem ter “alguma parte do corpo incompleta ou imperfeita”.
Em síntese, nos primeiros séculos da Era Cristã houve, pelos registros históricos, mesmo com as restrições acima, uma mudança no olhar em relação não só aos deficientes, mas também às populações humildes e mais pobres. Os hospitais e centros de atendimento aos carentes e necessitados continuaram a crescer, impulsionados muitas vezes pelo trabalho dos bispos e das feiras nos mosteiros.
O período conhecido como Idade Média, entre os séculos V e XV, traz algumas informações e registros (preocupantes) sobre pessoas com deficiência. Continuaram a existir, na maioria das vezes controlados e mantidos por senhores feudais, locais para o atendimento de doentes e deficientes. As referências históricas enfatizam, porém, o predomínio de concepções místicas, mágicas e misteriosas sobre a população com deficiência. Além disso, é preciso lembrar que o crescimento dos aglomerados urbanos ao longo desse período criou dificuldades para a manutenção de patamares aceitáveis de higiene e saúde. Durante muitos séculos, os habitantes das cidades medievais viveram sob a permanente ameaça das epidemias ou doenças mais sérias.
As incapacidades físicas, os sérios problemas mentais e as malformações congênitas eram considerados, quase sempre, como sinais da ira divina, taxados como “castigo de Deus”. A própria Igreja Católica adota comportamentos discriminatórios e de perseguição, substituindo a caridade pela rejeição àqueles que fugiam de um “padrão de normalidade”, seja pelo aspecto físico ou por defenderem crenças alternativas, em particular no período da Inquisição nos séculos XI e XII. Hanseníase, peste bubônica, difteria e outros males, muitas vezes incapacitantes, disseminaram-se pela Europa Medieval. Muitas pessoas que conseguiram sobreviver, mas com sérias seqüelas, passaram o resto dos seus dias em situações de extrema privação e quase que na absoluta marginalidade.
No final do século XV, a questão das pessoas com deficiência estava completamente integrada ao contexto de pobreza e marginalidade em que se encontrava grande parte da população, não só os deficientes. É claro que exemplos de caridade e solidariedade para com eles também existiram durante a Idade Média, mas as referências gerais desta época situam pessoas com deformidades físicas, sensoriais ou mentais na camada de excluídos, pobres, enfermos ou mendigos.
O período conhecido como “Renascimento” não resolveu, naturalmente, esta situação de maneira satisfatória. Mas, sem dúvida, ele marca uma fase mais esclarecida da humanidade e das sociedades em geral, com o advento de direitos reconhecidos como universais, a partir de uma filosofia humanista e com o avanço da ciência.
Entre os séculos XV e XVII, no mundo europeu cristão, ocorreu uma paulatina e inquestionável mudança sócio-cultural, cujas marcas principais foram o reconhecimento do valor humano, o avanço da ciência e a libertação quanto a dogmas e crendices típicas da Idade Média. De certa forma, o homem deixou de ser um escravo dos “poderes naturais” ou da ira divina. Esse novo modo de pensar, revolucionário sob muitos aspectos, “alteraria a vida do homem menos privilegiado também, ou seja, a imensa legião de pobres, dos enfermos, enfim, dos marginalizados. E dentre eles, sempre e sem sombra de dúvidas, os portadores de problemas físicos, sensoriais ou mentais” (Silva, 1987, p. 226).
A partir desse momento, fortalece-se a idéia de que o grupo de pessoas com deficiência deveria ter uma atenção própria, não sendo relegado apenas à condição de uma parte integrante da massa de pobres ou marginalizados. Isso se efetivou através de vários exemplos práticos e concretos. No século XVI, foram dados passos decisivos na melhoria do atendimento às pessoas portadoras de deficiência auditiva que, até então, via de regra, eram consideradas como “ineducáveis”, quando não possuídas por maus espíritos.
Ao longo dos séculos XVI e XVII, em diferentes países europeus, foram sendo construídos locais de atendimento específico para pessoas com deficiência, fora dos tradicionais abrigos ou asilos para pobres e velhos. A despeito das malformações físicas ou limitações sensoriais, essas pessoas, de maneira esporádica e ainda tímida, começaram a ser valorizadas enquanto seres humanos. Entretanto, além de outras práticas discriminatórias, mantinha-se o bloqueio ao sacerdócio desses indivíduos pela Igreja Católica.
Chegando ao século XIX, é interessante registrar a forma como o tema das pessoas com deficiência era tratado nos EUA. Neste país, já em 1811, foram tomadas providências para garantir moradia e alimentação a marinheiros ou fuzileiros navais que viessem a adquirir limitações físicas. Assim, desde cedo, estabeleceu-se uma atenção específica para pessoas com deficiência nos EUA, em especial para os “veteranos” de guerras ou outros conflitos militares. Depois da Guerra Civil norte-americana, foi construído, na Filadélfia, em 1867, o Lar Nacional para Soldados Voluntários Deficientes, que posteriormente teria outras unidades[1].
A assistência e a qualidade do tratamento dado não só para pessoas com deficiência como para população em geral tiveram um substancial avanço ao longo do século XX. No caso das pessoas com deficiência, o contato direto com elevados contingentes de indivíduos com seqüelas de guerra exigiu uma gama variada de medidas. A atenção às crianças com deficiência também aumentou, com o desenvolvimento de especialidades e programas de reabilitação específicos.
No período entre Guerras é característica comum nos países europeus – Grã-Bretanha e França, principalmente, e também nos EUA – o desenvolvimento de programas, centros de treinamento e assistência para veteranos de guerra. Na Inglaterra, por exemplo, já em 1919, foi criada a Comissão Central da Grã-Bretanha para o Cuidado do Deficiente. Depois da II Guerra, esse movimento se intensificou no bojo das mudanças promovidas nas políticas públicas pelo Welfare State. Dado o elevado contingente de amputados, cegos e outras deficiências físicas e mentais, o tema ganha relevância política no interior dos países e também internacionalmente, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). A “epopéia” das pessoas com deficiência passaria a ser objeto do debate público e ações políticas, assim como outras questões de relevância social, embora em ritmos distintos de um país para o outro.
Em suma, nesse panorama histórico buscamos resgatar elementos para uma visão geral acerca da temática das pessoas com deficiência. Da execução sumária ao tratamento humanitário passaram-se séculos de história, numa trajetória irregular e heterogênea entre os países (e entre as próprias pessoas com deficiência). Apesar disso, é possível visualizar uma tendência de humanização desse grupo populacional. É verdade que, até nos dias de hoje, existem exemplos de discriminação e/ou maus-tratos, mas o amadurecimento das civilizações e o avanço dos temas ligados à cidadania e aos direitos humanos provocaram, sem dúvida, um novo olhar em relação às pessoas com deficiência[2].

Trajetória das pessoas com deficiência na História do Brasil – “Caminhando em silêncio”

Os arquivos da História brasileira registram referências variadas a “aleijados”, “enjeitados”, “mancos”, “cegos” ou “surdos-mudos”. No entanto, assim como ocorria no continente europeu, a quase totalidade dessas informações ou comentários está diluída nas menções relativas à população pobre e miserável. Ou seja, também no Brasil, a pessoa deficiente foi incluida, por vários séculos, dentro da categoria mais ampla dos “miseráveis”, talvez o mais pobre entre os pobres (Silva, 1987).
Figueira (2008) realiza trajetória semelhante àquela de Silva (1987), mas concentra-se na história do Brasil. Figueira (2008) propõe que seu livro marque uma introdução à história das pessoas com deficiência no Brasil, definindo também sua tese principal, com a qual concordamos integralmente: “(...) as questões que envolvem as pessoas com deficiência no Brasil – por exemplo, mecanismos de exclusão, políticas de assistencialismo, caridade, inferioridade, oportunismo, dentre outras – foram construídas culturalmente” (grifos nossos. Figueira, 2008, p.17). Assim sendo, é importante termos em mente que questões culturais demoram a ser revertidas, mas este é o movimento que tem sido priorizado pelas pessoas com deficiência nas últimas décadas.
Tendo em vista essa perspectiva geral, Figueira (2008) inicia seu percurso com os primeiros “ecos históricos” da formação do Brasil. Através deles, é possível identificar aspectos importantes, como a política de exclusão ou rejeição das pessoas com algum tipo de deficiência praticada pela maioria dos povos indígenas, os maus-tratos e a violência como fatores determinantes da deficiência nos escravos africanos, e como, desde os primeiros momentos da nossa história, consolidou-se a associação entre deficiência e doença.
Sobre o primeiro aspecto, são reproduzidos relatos históricos que atestam condutas, práticas e costumes indígenas que significavam a eliminação sumária de crianças com deficiência ou a exclusão daquelas que viessem a adquirir algum tipo de limitação física ou sensorial. Mais uma vez cabe destacar que não podemos julgar tais práticas com os olhos de hoje, o que levaria a uma análise pejorativa e até mesmo preconceituosa em relação à população indígena.
Mas, dito isso, deve-se reconhecer que, entre as populações indígenas que habitavam o território que viria a ser o Brasil, predominou a prática de exclusão das crianças e abandono dos que adquiriam uma deficiência. Tais costumes não diferem muito daqueles também observados em outros povos da História Antiga e Medieval, onde a deficiência, principalmente quando ocorria no nascimento de uma criança, “não era vista com bons olhos”, mas sim entendida como um mau sinal, castigo dos deuses ou de forças superiores.
As crendices e superstições associadas às pessoas com deficiência continuaram a se reproduzir ao longo da história brasileira. Assim como os curandeiros indígenas, os “negro-feiticeiros” também relacionavam o nascimento de crianças com deficiência a castigo ou punição. Na verdade, mesmo para doutrinas religiosas contemporâneas, até as deficiências adquiridas são vistas como previamente determinadas por forças divinas ou espirituais. Não vamos explorar essa questão neste artigo, mas vale o registro desse aspecto que, de certa forma, é uma contradição com o paradigma social e dos direitos humanos com que se tem tratado esse assunto.
Longe de ser um mal sobrenatural, a deficiência física ou sensorial nos negros escravos decorreu, inúmeras vezes, dos castigos físicos a que eram submetidos. De início, a forma como se dava o tráfico negreiro, em embarcações superlotadas e em condições desumanas, já representava um meio de disseminação de doenças incapacitantes, que deixavam seqüelas e não raro provocavam a morte de um número considerável de escravos.
Os documentos oficiais da época não deixam dúvidas quanto à violência e crueldade dos castigos físicos aplicados tanto nos engenhos de açúcar como nas primeiras fazendas de café. O rei D. João V, por exemplo, em alvará de 03 de março de 1741, define expressamente a amputação de membros como castigo aos negros fugitivos que fossem capturados. Uma variedade de punições, do açoite à mutilação, eram previstas em leis e contavam com a permissão (e muitas vezes anuência) da Igreja Católica. Talvez o número de escravos com deficiência só não tenha sido maior porque tal condição representava prejuízo para o seu proprietário, que não podia mais contar com aquela mão-de-obra.
Os colonos portugueses, desde o momento em que chegaram ao território descoberto por Cabral, sofreram com as condições climáticas, como o forte calor, além da enorme quantidade de insetos. Estas características tropicais repercutiram na saúde e bem-estar dos europeus, sendo que “algumas dessas enfermidades de natureza muito grave chegaram a levá-los a aquisição de severas limitações físicas ou sensoriais” (Figueira, 2008, p. 55). Observando a formação da população no Brasil Colonial, o historiador da medicina Licurgo Santos Filho acentua que: “tal e qual como entre os demais povos, e no mesmo grau de incidência, o brasileiro exibiu casos de deformidades congênitas ou adquiridas. Foram comuns os coxos, cegos, zambros e corcundas” (Santos Filho apud Figueira, 2008, p. 56). As condições de tratamento da maioria das enfermidades não eram adequadas e continuariam assim por várias décadas.
Já no século XIX, a questão da deficiência aparece de maneira mais recorrente em função do aumento dos conflitos militares (Canudos, outras revoltas regionais e a guerra contra o Paraguai). O general Duque de Caixas externou ao Governo Imperial suas preocupações com os soldados que adquiriam deficiência. Foi então inaugurado no Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1868, o “Asilo dos Inválidos da Pátria”, onde “seriam recolhidos e tratados os soldados na velhice ou os mutilados de guerra, além de ministrar a educação aos órfãos e filhos de militares” (Figueira, 2008, p. 63). Apesar da intenção humanitária, as referências históricas expressam um quadro de extrema precariedade no funcionamento da instituição durante o período imperial . Mesmo assim, e certamente com alguma melhora nas condições de atendimento, o Asilo Inválidos da Pátria permaneceu funcionando por 107 anos, somente sendo desativado em 1976.
O avanço da medicina ao longo do século XX trouxe consigo uma maior atenção em relação aos deficientes. A criação dos hospitais-escolas, como o Hospital das Clínicas de São Paulo, na década de 40, significou a produção de novos estudos e pesquisas no campo da reabilitação. Nesse contexto, como não poderia ser diferente, havia uma clara associação entre a deficiência e a área médica. Na verdade, ainda em meados do século XIX, com a criação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos (1854), ficava explícita uma relação entre doença e deficiência que, sem exagero algum, permanece até os dias atuais (em que pese a luta do movimento organizado das pessoas com deficiência a partir de 1981 pelo chamado “modelo social” para tratar dessa questão, em oposição ao modelo “médico-clínico”).
O fato é que, ao longo de nossa história, assim como ocorreu em outros países, a deficiência foi tratada em ambientes hospitalares e assistenciais. Ao estudar o assunto, os médicos tornavam-se os grandes especialistas nessa seara e passavam a influenciar, por exemplo, a questão educacional das pessoas com deficiência, tendo atuação direta como diretores ou mesmo professores das primeiras instituições brasileiras voltadas para a população em questão.
O grau de desconhecimento sobre as deficiências e suas potencialidades, porém, permaneceu elevado na primeira metade do século XX, o que se percebe pelo número considerável de pessoas com deficiência mental tratadas como doentes mentais[3]. A falta de exames ou diagnósticos mais precisos resultou numa história de vida trágica para milhares de pessoas nesta condição, internadas em instituições e completamente apartadas do convívio social.
Antes da existência das instituições especializadas, as pessoas com deficiência tiveram, em grande medida, sua trajetória de vida definida quase que exclusivamente pelas respectivas famílias. O Imperial Instituto dos Meninos Cegos (1854), que citamos acima, marca o momento a partir do qual a questão da deficiência deixou de ser responsabilidade única da família, passando a ser um “problema” do Estado. Mas não enquanto uma questão geral de política pública, pois o que ocorreu foi a transferência dessa responsabilidade para instituições privadas e beneficentes, eventualmente apoiados pelo Estado. Estas instituições ampliaram sua linha de atuação para além da reabilitação médica, assumindo a educação das pessoas com deficiência. Até 1950, segundo dados oficiais, havia 40 estabelecimentos de educação especial somente para deficientes intelectuais (14 para outras deficiências, principalmente a surdez e a cegueira).
Na década de 40, cunhou-se a expressão “crianças excepcionais”, cujo significado se referia a “aquelas que se desviavam acentuadamente para cima ou para baixo da norma do seu grupo em relação a uma ou várias características mentais, físicas ou sociais” (Figueira, 2008, p. 94). O senso comum indicava que estas crianças não poderiam estar nas escolas regulares, do que decorre a criação de entidades até hoje conhecidas, como a Sociedade Pestallozzi de São Paulo (1952) e a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE do Rio de Janeiro (1954). Essas entidades, até hoje influentes, passaram a pressionar o poder público para que este incluísse na legislação e na dotação de recursos a chamada “educação especial”, o que ocorre, pela primeira vez, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 4.024, de 20 de dezembro de 1961.
Felizmente, percebeu-se com o tempo que, assim como acontecia em outros países, as pessoas com deficiência poderiam estar nos ambientes escolares e de trabalho comuns a toda população, freqüentando também o comércio, bares, restaurantes ou prédios públicos, enfim, não precisariam estar sempre circunscritas ao espaço familiar ou das instituições especializadas. Esta percepção está refletida na expansão de leis e decretos sobre os mais variados temas a partir, principalmente, da década de 80, como discutiremos mais à frente.
A nossa trajetória histórica, quando as pessoas com deficiência eram “ignoradas” ou “caminhavam em silêncio”, se encerra no ano de 1981, declarado pela ONU como Ano Internacional da Pessoa Deficiente (AIPD). De acordo com Figueira (2008):

“Se até aqui a pessoa com deficiência caminhou em silêncio, excluída ou segregada em entidades, a partir de 1981 – Ano Internacional da Pessoa Deficiente -, tomando consciência de si, passou a se organizar politicamente. E, como conseqüência, a ser notada na sociedade, atingindo significativas conquistas em pouco mais de 25 anos de militância” (grifos nossos. Figueira, 2008, p. 115).

A palavra-chave do AIPD foi “conscientização”, tendo sido organizadas várias manifestações para alertar sobre a própria existência e os direitos das pessoas com deficiência, contra a invisibilidade. Em que pesem as críticas e relatos eventuais de descontentamento, o fato é que, para a maioria daqueles que estiveram envolvidos, o Ano Internacional cumpriu o seu papel de chamar a atenção da sociedade para a questão da deficiência. Como afirma Figueira: “boa ou má, a situação das pessoas com deficiência começou a ser divulgada a partir de 1981. Inclusive, elas mesmas começaram a tomar consciência de si como cidadãos, passando a se organizar em grupos ou associações” (Figueira, 2008, p. 119).
Em outras palavras, é claro que anteriormente tivemos inúmeros casos de êxito individual de pessoas com deficiência, mas 1981 marca um reconhecimento mútuo e coletivo da situação em que se encontravam muitos portadores de deficiência. Um mundo “obscuro” ou “ignorado”, nas palavras de publicações da época, não poderia mais ser escondido da sociedade e do poder público, continuando somente como “um peso ou fardo individual e/ou familiar”.
Portanto, o percurso histórico das pessoas com deficiência no Brasil, assim como ocorreu em outras culturas e países, foi marcado por uma fase inicial de eliminação e exclusão, passando-se por um período de integração parcial através do atendimento especializado. Estas fases deixaram marcas e rótulos associados às pessoas com deficiência, muitas vezes tidas como incapazes e/ou doentes crônicas. Romper com esta visão, que implica numa política meramente assistencialista para as pessoas com deficiência, não é uma tarefa fácil. Mas, com menor ou maior êxito, isso foi feito com o avanço da legislação nacional sobre este tema, contando agora com a contribuição direta das próprias pessoas com deficiência.
Este movimento culmina com a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) pelo Brasil, conferindo-lhe status de emenda constitucional. A participação direta e efetiva dos indivíduos com limitações físicas, sociais e cognitivas na elaboração da Convenção (e posteriormente na sua internalização) não foi fruto do acaso, mas decorre do paulatino fortalecimento deste grupo populacional, que sobreviveu e passou a exigir direitos civis, políticos, sociais e econômicos.
2 – A “política nacional de integração” e as reservas de vagas nos setores públicos e privados – Uma análise crítica

Na década de 80, a convocação de uma Assembléia Constituinte foi o principal instrumento para restabelecer o Estado Democrático de Direito. Era vista como a “solução-síntese” ou o “berço da democracia” pelos setores que combateram o regime militar (Fagnani, 2005). Nesse processo, foi fundamental o fortalecimento dos movimentos sociais, que se reorganizavam depois do período repressivo e autoritário das décadas de 60 e 70. Esta nova etapa da democracia brasileira coincide com o “despertar” do movimento organizado das pessoas com deficiência, a partir de 1981, o que contribuiu para a inclusão de vários artigos na Constituição de 1988 que mencionam diretamente este contingente populacional:

Quadro 1 – Principais Artigos sobre Pessoas com Deficiência – Constituição de 1988

Artigo 7 – proíbe “qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”.
Artigo 23 – estabelece a “competência comum” da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para “cuidar da saúde, da assistência social, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”.
Artigo 37 – prevê que legislação complementar “reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.
Artigo 203 – no inciso V postula a “garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”.
Artigo 208 – estabelece que “o dever do Estado com a Educação será efetivado mediante a garantia do, entre outros aspectos, atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”.
Artigo 227 – garante o acesso das pessoas portadoras de deficiência aos logradouros públicos: “a lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e da fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência”.
Fonte: Fagnani, 2005.

O texto constitucional define diretrizes gerais e garante direitos que, na maioria dos casos, dependiam de legislação posterior para sua regulamentação. Os artigos da Constituição pinçados acima ilustram que, assim como para todas as pessoas, os direitos dos “portadores de deficiência” se referem às mais variadas áreas e temáticas sociais, desde a não-discriminação no trabalho até a acessibilidade (numa terminologia mais recente), passando pelas áreas clássicas como saúde e educação. Nesse sentido, ao estabelecer os princípios gerais, a Constituição lançou luz para legislações futuras.
No presente trabalho, não temos como objetivo resgatar e sistematizar a legislação existente sobre pessoas com deficiência no país. Essa tarefa já foi realizada por diferentes autores[4], dentre os quais destacamos a procuradora da República Eugênia Augusta G. Fávero. Em seu livro “Direitos das Pessoas com Deficiência – Garantia de igualdade na diversidade (2004)”, a autora faz uma compilação das leis nacionais em forma de perguntas e respostas. Dessa forma, o material se constitui num guia prático para aqueles interessados na legislação e na construção de uma sociedade inclusiva. A recuperação das leis que faremos nesta seção busca apenas enfatizar aspectos que nos parecem decisivos para que tal construção seja efetiva.
Assim sendo, as legislações selecionadas serão apresentadas nos seguintes eixos temáticos: a) a “política nacional de integração” (Lei 7.853/89 e Decreto 3.298/99), com destaque para o papel da CORDE (Coordenadoria para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência); b) a reserva de vagas nos concursos públicos (Lei 8.122/90) e as cotas no setor privado (Lei 8.213/91).
Optou-se também por concentrar a discussão apenas nesses dois temas[5]. Muito mais do que reproduzir o texto jurídico que define normas, conceitos, direitos e/ou prazos, pretende-se fazer uma discussão crítica destes instrumentos na sua aplicação cotidiana, tentando identificar avanços e problemas.

A Política Nacional de Integração – Lei 8.213/89 e Decreto 3.289/99

Vistas em conjunto, a Lei 7.853/89 e o Decreto 3.298/99 constituem o arcabouço jurídico mais amplo, embora defasado, sobre pessoas com deficiência que existe no país, uma vez que são intersetoriais, tratando de diferentes áreas como trabalho, educação, saúde e assistência social.
Em linhas gerais, a formulação da política nacional voltada para a população com deficiência, cujas diretrizes estão apresentadas no artigo 2º. da Lei 7.853/89, reflete o paradigma vigente da época, ou seja, a “integração” do portador de deficiência. Tal paradigma pressupunha a reabilitação do indivíduo com deficiência para que, por méritos próprios e o mais próximo possível de um padrão “normal”, pudesse ser integrado ou reintegrado nos sistemas gerais de educação, saúde e trabalho, por exemplo (Sassaki, 1997).
Tratava-se de um avanço em relação a uma perspectiva de mera segregação das pessoas com deficiência, mas ainda não se vislumbrava claramente a idéia de inclusão social, de fato, desse contingente populacional. Ao final da década de 80, as pessoas com deficiência, de maneira geral, já não estavam isoladas e silenciadas, mas nos parece que a integração era um processo mais dependente do indivíduo e das instituições especiais do que propriamente uma responsabilidade do Estado (mesmo reconhecendo que a Lei 7.853/89 tenha caminhado nessa direção).
A afirmação anterior pode ser confirmada quando se avalia, entre outros aspectos, o artigo 2º. da Lei 7.853/89, em algumas áreas específicas. Embora esteja expressa a responsabilidade do Poder Público e seus órgãos em “assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer e à previdência social (...)”, a legislação enfatiza, no que tange à Educação, a modalidade de “Educação Especial” como preponderante no acesso escolar das pessoas com deficiência. Percebe-se, assim, certa dificuldade na defesa de uma educação verdadeiramente inclusiva, sendo que, para a matrícula nos estabelecimentos regulares de ensino público ou privado, garante-se apenas o acesso das “pessoas portadoras de deficiência capazes de se integrarem” (grifos nossos, alínea f, parágrafo I, artigo 2, da Lei 7.853/89).
Além desta “política nacional de integração”, a Lei 7.853/89 estruturou a CORDE – Coordenadoria para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência –, órgão executor desta política. Embora tenha sido criada, em 1989, com autonomia financeira e subordinada à Presidência da República, no início do governo Collor o órgão foi transferido para o Ministério do Bem-Estar Social. Houve prejuízos para a sua atuação, que foi marcadamente assistencial. Em janeiro de 1995, a CORDE migrou para a Secretaria dos Direitos da Cidadania, do Ministério da Justiça, realçando a ênfase na atenção integral à pessoa, e não apenas na assistência para a sobrevivência. Após 1999, houve outra alteração positiva, com a vinculação do órgão à Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH). Esta Coordenadoria teve recentemente seu status institucional elevado, passando ao status de Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto 7.256/10).
As mudanças institucionais na CORDE suscitam o debate sobre a melhor forma de inserção na administração pública dos órgãos que lidam com a temática da deficiência. Aqui não se pretende alongar sobre este aspecto, mas, em nossa avaliação, embora seja correto e necessário que nos três níveis da administração pública existam órgãos ou coordenadorias específicas deste tipo (interagindo com os demais entes da administração e preferencialmente tendo a mesma vinculação institucional de outros grupos populacionais historicamente discriminados), a criação de Secretarias municipais ou estaduais, e mais ainda de um Ministério específico, como foi defendido na última campanha presidencial pelo candidato oposicionista, nos parece um exagero e um equívoco, na medida em que reforça a idéia de segregação e particularização das pessoas com deficiência.
O Decreto 3.298, promulgado em 20 de Dezembro de 1999, “regulamenta a Lei 7.853/89, dispõe sobre a política nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência, consolida as normas de proteção e dá outras providências”. Interessante registrar que: “a regulamentação da Lei 7.853 demorou dez anos para vir a lume, numa demonstração de que os direitos dos deficientes foram, ao longo de tantos anos, relegados a um segundo plano” (Moro, 2007, p. 84). Isso não significa que outras legislações não foram produzidas nesses dez anos, mas, realmente, observa-se que houve uma demora para que a política de integração fosse regulamentada.
Além disso, o Decreto 3.298/99 vai tratar de uma questão que não foi abordada na Lei de 1989, talvez pela sua complexidade, qual seja: quem são as pessoas com deficiência? No capítulo I (Disposições Gerais) do Decreto 3.298/99, encontram-se as definições sobre “deficiência”, “deficiência permanente” e “incapacidade”, como também os critérios para classificação dos indivíduos como portadores de deficiência física, auditiva, visual, mental ou múltipla. Tais definições estão claramente centradas na limitação do indivíduo, com forte conotação médico-clínica (“função psicológica, fisiológica ou anatômica”), além da busca e comparação com um “padrão de normalidade”.
De maneira geral, são expressos critérios “técnicos” para a definição das diferentes deficiências. Por exemplo: “acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a 20º (tabela de Snellen), ou ocorrência simultânea de ambas as situações”, para definição da deficiência visual. Até 2004, esses foram os parâmetros utilizados para fiscalizar o cumprimento da “Lei de Cotas” (art. 93 da Lei 8.213/91) no mercado de trabalho. O Decreto 5.296/04, conhecido como o “Decreto da Acessibilidade”, alterou a redação do artigo 4º. do Decreto 3.298/99, utilizando-se de outros conceitos para as definições das deficiências física, auditiva, visual e mental.
Sobre isso, a questão que se coloca é a seguinte: qual o sentido de classificar ou categorizar as pessoas? No nosso entendimento, este processo é um “mal necessário” para que, através de determinadas leis e políticas públicas específicas seja possível, com justiça e equidade, equiparar oportunidades e permitir o exercício pleno da cidadania por pessoas que foram historicamente discriminadas e/ou sofrem dificuldades objetivas no seu dia-a-dia. Nesse sentido, a classificação seria necessária apenas para políticas de cunho particularizado, que definem isenções, benefícios, gratuidades ou cotas. Elas devem ter, ainda, um caráter temporário, sendo constantemente avaliadas e aperfeiçoadas.
Por exemplo, a reserva de vagas nos setores privado e público, que trataremos na seqüência, só deve continuar existindo enquanto continuar havendo barreiras para o acesso das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho. Num cenário ideal, com todas as pessoas dispondo dos recursos materiais e humanos para o pleno acesso à educação e ao trabalho, qual o objetivo da reserva de vagas?
Trata-se de uma discussão difícil e complexa. A prática atual, entretanto, exige que esse debate seja travado, pois a legislação contemporânea e as interpretações judiciais têm, em nossa opinião, provocado injustiças. Há um processo de banalização dos instrumentos de ação afirmativa, em particular no que se refere às vagas nos concursos públicos. Um exemplo claro disso é ampla jurisprudência existente, inclusive com uma súmula do STJ (Superior Tribunal de Justiça; súmula 377/09) sobre o tema, que favorece pessoas com visão monocular (“cegueira de um olho”) ou audição unilateral para concorrerem enquanto “pessoas com deficiência”. Como não há uma gradação em termos do nível da limitação, tais indivíduos, embora não apresentem significativas dificuldades funcionais, concorrem no mesmo grupo que tetraplégicos ou pessoas com cegueira ou surdez total.
Esses questionamentos derivam das definições sobre os tipos de Deficiência expressas no Decreto 3.298/99. Vistas em conjunto, embora tenham lançado as bases de uma política de integração, a Lei 8.213/89 e o Decreto 3.298/99 devem ser aperfeiçoados. Passados mais de dez anos da implementação do Decreto – que regulamentou a Lei – acreditamos que chegou o momento para, à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), produzida nas Nações Unidas e ratificada pelo Brasil como uma emenda à nossa Constituição, rever e consolidar as normas jurídicas no sentido de construir uma “política nacional de inclusão das pessoas com deficiência”. Retomaremos esse ponto mais à frente, mas por ora vale problematizar a questão das vagas reservadas nos concursos públicos e das cotas no setor privado.

A reserva de vagas em concursos públicos (Lei. 8.122/90) e as cotas no setor privado (Lei 8.213/91)

Nesta seção, pretende-se fazer uma avaliação crítica dos artigos relacionados às pessoas com deficiência nas Leis 8.122/90 e 8.213/91. Apresentando o conteúdo destes instrumentos legais, procura-se realizar uma avaliação da aplicação prática dos mesmos, pontuando problemas na sua execução.
A lei 8.122 de 11 de Dezembro de 1990 versa sobre o regime jurídico dos servidores públicos da União. No capítulo I (do provimento), na seção I (disposições gerais), encontra-se o artigo 5O., parágrafo segundo, que diz: “às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para o provimento de cargos cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”. Dessa forma, buscou-se avançar no disposto no artigo 37 da Constituição Federal[6].
Tanto no texto constitucional como no artigo citado acima, da Lei 8.122/90, pretendeu-se dar garantias legais para aplicação de uma ação afirmativa. Vale sempre observar, assim como faz Gugel (2006), que tais ações significam a “adoção de medidas legais e de políticas públicas que objetivam eliminar as diversas formas e tipos de discriminação que limitam oportunidades de determinados grupos sociais (Gugel, 2006, pg. 15)”. Portanto, só fazem jus a essa política grupos historicamente discriminados e que, na realidade cotidiana, tenham limitadas suas “oportunidades” em termos da formação escolar, acesso ao trabalho, etc.
A Lei 7.853/89, apresentada anteriormente, incluiu o acesso ao trabalho como um dos direitos básicos das pessoas com deficiência e reafirmou a necessidade da “adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho em favor das pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado” (alínea “d”, seção III, artigo 2º.). Porém, no que tange ao acesso desse segmento populacional via concursos públicos, o tema só foi regulamentado pelo Decreto Federal 3.298/99. Isso significa que, embora tivéssemos a previsão da reserva de vagas na Constituição Federal e nas leis 7.853/89 e 8.122/90, demorou cerca de dez anos para que se disciplinasse a matéria, definindo-se os critérios para que ela pudesse ser aplicada.
Isso foi feito com de acordo com os parágrafos primeiro e segundo do artigo 37 do Decreto 3.298/99[7]:
Quadro 2 – Artigo 37 – Decreto 3.298/99
§ 1º - O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida.

§ 2º - Caso a aplicação do percentual de que trata o parágrafo anterior resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente.

O percentual mínimo de vagas reservadas definido no Decreto 3.298/99 ficou em 5%, que é o número adotado na imensa maioria dos concursos públicos. O parágrafo segundo determina a elevação até o próximo número inteiro quando se aplica o percentual de 5% nas vagas oferecidas, mas ele é sempre aplicado em conjunto com o artigo 5º. da lei 8.122/90, que fala num percentual máximo de 20% para a reserva de vagas. Assim sendo, para que um concurso público tenha vagas reservadas ele deve oferecer, no mínimo, cinco vagas. Nos casos em que se oferece menos do que isso, dada a aplicação de 5% e a elevação até o próximo número inteiro (um), ter-se-ia que a vaga reservada representaria mais do que 20% do total das oferecidas (por exemplo, se são quatro vagas, uma vaga reservada representa 25% do total).
Somente com essas regras e as definições dos tipos de deficiência foi possível estabelecer parâmetros para efetivação da Lei. O Decreto 3.298/99, como vimos, trouxe tais definições, que seriam alteradas em 2004 pelo “Decreto da Acessibilidade”. Pautando-se pelo disposto nos Editais, o candidato com deficiência deverá apresentar, no ato da inscrição no certame, o laudo médico atestando a espécie e o grau ou nível da deficiência, com expressa referência ao código correspondente da Classificação Internacional de Doenças (art. 38, IV do Decreto n. 3.298/1999).
Geralmente, a apresentação do laudo médico é suficiente para que o candidato tenha deferido o seu pedido de concorrer como portador de deficiência. No ato da inscrição, “o candidato portador de deficiência que necessite de tratamento diferenciado nos dias do concurso deverá requerê-lo, no prazo determinado em edital, indicando as condições diferenciadas de que necessita para a realização das provas” (§ 1º, art. 40, Decreto 3.298/99).
Essa passagem nos leva a indagar se aquele candidato que não precisa de nenhum tipo de auxílio para fazer a prova se enquadra como portador de deficiência. A princípio, se a pessoa pode fazer normalmente uma prova, é muito provável que ela não tenha tido dificuldades durante seu processo de formação escolar. Mas é claro que essa é uma avaliação caso a caso e, mesmo que não precise de auxílio, o candidato pode alegar que sofre discriminação para buscar o trabalho e, assim, deve ser respaldado pela ação afirmativa.
O artigo 43 do Decreto 3.298/99 define as atribuições de uma equipe multidisciplinar que atuará para certificação da condição de deficiência dos candidatos aprovados no concurso. Essa equipe deve ser composta por três profissionais capacitados e atuantes nas áreas das deficiências em questão, sendo um deles médico, e três profissionais integrantes da carreira almejada pelo candidato, devendo emitir parecer observando:

I – as informações prestadas pelo candidato no ato da inscrição;
II – a natureza das atribuições e tarefas do cargo ou da função a desempenhar;
III – a viabilidade das condições de acessibilidade e as adequações do ambiente de trabalho na execução das tarefas;
IV – a possibilidade de uso, pelo candidato, de equipamentos e outros meios que habitualmente utilize; e
V – a CID e outros padrões reconhecidos nacional e internacionalmente.

Em teoria, pode-se dizer que existe uma normatização para a participação das pessoas com deficiência nos concursos e posterior ingresso no serviço público. O problema, entretanto, é que nem sempre esse procedimento é seguido ou respeitado integralmente. Já na definição do conteúdo dos concursos podem ocorrer situações que dificultem esta participação. Cunha (2007) chama atenção para a ementa de uma prova de “raciocínio lógico”, extremamente comum nos concursos públicos:

Quadro 3 – Ementa – prova de raciocínio lógico

"Raciocínio lógico-matemático: Esta prova visa a avaliar a habilidade do candidato em entender a estrutura lógica de relações arbitrárias entre pessoas, lugares, objetos ou eventos fictícios; deduzir novas informações das relações fornecidas e avaliar as condições usadas para estabelecer a estrutura daquelas relações. Os estímulos visuais utilizados na prova, constituídos de elementos conhecidos e significativos, visam analisar as habilidades dos candidatos para compreender e elaborar a lógica de uma situação, utilizando as funções intelectuais: raciocínio verbal, raciocínio matemático, raciocínio seqüencial, orientação espacial e temporal, formação de conceitos, discriminação de elementos.".
Fonte: Cunha, 2007.
De acordo com a autora, “torna-se impossível aos candidatos com deficiência visual em grau de cegueira resolver questões cuja análise prescinde da visão, como a observância de figuras, esquemas, planilhas, gráficos, etc., mormente quando a pessoa encarregada da leitura da prova para o candidato com deficiência visual, não consegue transmitir verbalmente tais elementos” (Cunha, 2007, pg.18). Outros exemplos poderiam ser dados, como a enorme dificuldade “operacional” de candidatos tetraplégicos em fazer provas que exigem cálculos ou tabelas.
Em suma, são essas dificuldades objetivas que, no nosso entendimento, justificam a reserva de vagas ou, no mínimo, uma pontuação adicional para as pessoas com grandes limitações físicas, sensoriais ou cognitivas. É verdade que o desenvolvimento de recursos tecnológicos pode auxiliar pessoas com tais limitações a fazerem a prova, mas, mesmo assim, é difícil imaginar que elas estariam em condições de igualdade com os demais candidatos. Portanto, assim como para a reserva de vagas no setor privado, nos parece apropriado que a Lei atenda apenas indivíduos com dificuldades funcionais efetivas.
No entanto, ao contrário disso, o que tem ocorrido na prática é a inclusão de novos grupos populacionais no rol de beneficiários dessa ação afirmativa. Já mencionamos nesse artigo a súmula 377 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Esse instrumento consolidou a jurisprudência ao determinar que “o portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes”.
Assim sendo, embora o Decreto Federal 5.296/04, que alterou as definições das deficiências do Decreto 3.298/99, não preveja a visão monocular como uma das categorias da deficiência visual, a “interpretação ampliada” prevista na súmula do STJ garante o “direito” das pessoas com visão monocular para concorrer às vagas reservadas. O problema disso, e que pôde ser constatado através do nosso envolvimento no movimento sócio-político das pessoas com deficiência, é que, via de regra, as pessoas com visão monocular não encontram dificuldades nas suas atividades diárias, nem são vítimas de discriminação no mercado de trabalho. Mesmo que encontrem algumas dificuldades, estas são certamente muito menores do que aquelas que vivenciam pessoas cegas, surdas ou com grande limitação física ou cognitiva.
Essa reflexão é útil também quando pensamos na Lei 8.213 de 24 de Julho de 1991, que dispõe sobre os planos de Benefícios da Previdência Social. O artigo 93 desta Lei, na
subseção da “habilitação e reabilitação profissional”, determina que:


Quadro 4 – Artigo 93 da Lei 9.213/91 – “Lei de Cotas”

Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:

I - até 200 empregados...........................................................................................2%;
II - de 201 a 500......................................................................................................3%;
III - de 501 a 1.000..................................................................................................4%;
IV - de 1.001 em diante. .........................................................................................5%.

§ 1º A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante.

§ 2º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social deverá gerar estatísticas sobre o total de empregados e as vagas preenchidas por reabilitados e deficientes habilitados, fornecendo-as, quando solicitadas, aos sindicatos ou entidades representativas dos empregados.
Fonte: Lei 8.213/91.

Em primeiro lugar, é interessante observar que, da mesma forma que ocorreu nas vagas reservadas em concursos públicos, as cotas no setor privado foram previstas num artigo “isolado” de uma legislação bem mais ampla, no início da década de 90. Somente com o Decreto 3.298/99, que desenhou a “política de integração” e definiu os tipos de deficiência, foi possível partir para aplicação do previsto no artigo 93 da Lei 8.213/91. O Decreto 3.298/99 também definiu a competência do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para, através dos fiscais do trabalho, monitorar as empresas quanto ao cumprimento da “Lei de Cotas” e fornecer dados a respeito dessa questão (art. 36, § 5º, do Decreto 3.298/99). Até então, havia certa confusão sobre esta responsabilidade, que em tese poderia ser também do Ministério da Previdência Social (como sugere o segundo parágrafo do artigo 93).
A multa a ser aplicada às empresas que não cumprissem a cota já estava prevista no artigo 133 da Lei 8.213/91, mas só foi regulamentada através de uma Instrução Normativa de 2001 do Ministério do Trabalho e Emprego e da Portaria n. 1.119, de 28 de Outubro de 2003, escalonando o valor da multa ao tamanho das empresas, assim como faz o artigo 93 ao definir a cota como proporção do número de empregados. O cálculo da multa é feito com base no número de pessoas com deficiência ou reabilitados que a empresa está deixando de contratar. Multiplica-se esse número por um valor mínimo legal (previsto já na Lei 8.213 e atualizado em 1998 através de Portaria do Ministério da Previdência Social). Ao resultado anterior é acrescido um percentual que varia de zero a cinqüenta por cento, dependendo do porte da empresa (as maiores são, naturalmente, mais penalizadas). A aplicação da multa é de responsabilidade das autoridades regionais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Construiu-se, assim, um arcabouço institucional para que a “Lei de Cotas” pudesse ser aplicada e fiscalizada no país. Isso só ocorreu na primeira década do século atual, particularmente a partir de 2001, com iniciativas das Delegacias Regionais de Trabalho (atualmente Gerências Regionais de Trabalho e Emprego). O processo se fez, em boa medida, com a participação de diferentes “atores sociais” nos chamados Núcleos de Promoção da Igualdade de Oportunidade e de Combate à Discriminação no Trabalho, criados em 2001. O papel desses núcleos foi, e continua sendo, o de reunir associações, entidades, sindicados, pesquisadores acadêmicos, entre outros, para tratar da questão da diversidade no trabalho, abordando questões como gênero, raça e pessoas com deficiência.
Mesmo com este arcabouço jurídico e o esforço de diferentes agentes sociais, a participação das pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal no Brasil continua sendo muito pequena. De acordo com estimativas realizadas, apenas entre 5% e 10% da população com deficiência, em idade produtiva, dependendo da região do país, está incluída formalmente no mundo do trabalho. Ademais, mesmo que a “Lei de Cotas” fosse cumprida integralmente – garantindo cerca de 800 mil vagas – milhões de pessoas com deficiência ainda ficariam fora do mercado formal. De maneira que ela é um instrumento de ação afirmativa necessário, mas claramente insuficiente (Garcia, 2010).
Nesta segunda parte do presente artigo, utilizando leis e Decretos Federais que são referências na discussão dos direitos das pessoas com deficiência, buscou-se problematizar aspectos práticos da sua aplicação. Nossa intenção não foi fazer “juízo de valor” da legislação, até porque, em grande medida, e mesmo com os eventuais problemas, ela foi fruto da participação ativa de pessoas com deficiência nas décadas de 80 e 90.No entanto, parece ter chegado a hora de um novo movimento de mudança e transformação nas leis que definem direitos e expressam políticas públicas no Brasil. Somente assim, recuperando nossa história e avaliando os avanços e dificuldades da trajetória deste grupo populacional – expressa, muitas vezes, pela legislação que o respalda – é que se pode continuar construindo o caminho para cidadania das pessoas com deficiência.

Considerações Finais

Na primeira parte desse artigo discutiu-se o contexto ou a trajetória histórica das pessoas com deficiência no Brasil e no mundo. Superados os períodos de rejeição ou eliminação sumária, as pessoas com deficiência continuaram praticamente “invisíveis”, mesmo com êxitos individuais esporádicos. Após as grandes guerras e conflitos mundiais, e dado o avanço da medicina ao longo do século XX, o mundo deparou-se (ou não pôde mais ignorar) uma questão que sempre existiu: seres humanos com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas. Nesse processo, para estimular a formação de um grupo social com afinidades próprias, e como um “grito de alerta” para a sociedade, o ano de 1981 foi um marco histórico fundamental. A partir daí, abriram-se caminhos para a participação política e reivindicatória das pessoas com deficiência.
Já a discussão realizada na segunda seção sugere que, num cenário ideal, deveria haver a combinação de “dois tipos” de legislação na área da deficiência: 1) legislações específicas: garantem vagas nos concursos públicos ou cotas no setor privado, definem isenções fiscais ou gratuidades e concedem benefícios dos mais variados Sua existência é plenamente justificável, dada a realidade histórica de exclusão e discriminação das pessoas com deficiência. Porém, sua aplicação deve ser restrita a quem, de fato, delas necessitam, criando-se, para sua concessão, critérios de renda ou mesmo da gravidade da limitação funcional que a deficiência provoca. Precisam, ainda, ser pensadas numa perspectiva de tempo, ou seja, deve-se caminhar para a gradativa diminuição ou abandono de tais legislações à medida que se constrói uma sociedade acessível e emancipatória para as pessoas com deficiência; 2) legislações universais: garantem direitos humanos, civis, políticos, sociais e econômicos às pessoas com deficiência. Pautam-se pelos princípios de equiparação de oportunidades e participação plena, não necessitando de definições ou critérios rígidos para sua aplicação. À medida em que tenham êxito, contribuem para o abandono das legislações específicas, colaborando para sociedade inclusiva com a qual sonhamos.
A construção da cidadania das pessoas com deficiência, felizmente, é um processo em curso. Nas últimas décadas, este debate transitou do campo do assistencialismo para esfera dos direitos humanos. É claro que existem problemas e dificuldades, mas, atualmente, existem vários canais para participação democrática e construtiva das pessoas com deficiência, como os conselhos paritários a nível municipal, estadual e nacional. Além disso, há um “norte” para revisão da legislação: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). Assim como afirma Fonseca (2008), a Convenção: “universaliza os direitos das pessoas com deficiência e, ao contrário do que alguns pensam, não significa um gueto institucional. É sim, sem sombra de dúvida, um instrumento jurídico adequado para que direitos nunca antes aplicados sejam estendidos às pessoas com deficiência” (Fonseca, 2008, p. 114).
A consolidação das leis nacionais à luz da Convenção é tarefa indispensável e urgente, até para barrar movimentos contrários que flexibilizam direitos e/ou mantém as pessoas com deficiência sob o manto da piedade, caridade e assistencialismo. Ao contrário dos que pensam alguns, “a história não acabou”, e ela continuará sendo construída nos embates políticos, na discussão técnica das leis e políticas e no cotidiano daqueles que vivenciam realidades sociais excludentes. Não poderia ser diferente para as pessoas com deficiência.
Finalmente, para a plena inclusão social, seja das pessoas com deficiência ou de outros segmentos socialmente vulneráveis, é fundamental que as condições econômicas e sociais do país evoluam de forma positiva. O crescimento econômico acelerado e sustentável, uma melhor distribuição de renda, serviços públicos com qualidade e programas sociais eficazes, dentre outros aspectos, são benéficos para todos, inclusive, obviamente, para aqueles com algum tipo de deficiência. Por mais que existam especificidades, não há um mundo “específico” das pessoas com deficiência. Elas também sentirão os efeitos da melhora social mais geral, por isso que as políticas específicas – gratuidades, cotas, isenções, benefícios, etc. – não podem ser um fim em si mesmo, mas parte de uma estratégia mais ampla na qual, equiparando oportunidades, todos possam construir um país melhor, mais justo e humano.

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Luiz Alberto D. - A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência – CORDE, Brasília, 1997.

CUNHA Tânia Regina Noronha – A reserva de cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência – Artigo publicado na rede SACI em 11/09/2007 (www.saci.org.br).

FAGNANI, Eduardo – Política Social no Brasil (1964-2002): Entre a Cidadania e a Caridade – Tese de Doutoramento apresentada no Instituto de Economia da Unicamp. Agosto de 2005.

FÁVERO, Eugênia Augusta. - Direitos das Pessoas com Deficiência – Garantia de igualdade na diversidade – Editora WVA, São Paulo, 2004.

FIGUEIRA, Emílio – Caminhando no Silêncio – Uma introdução à Trajetória das Pessoas com Deficiência na História do Brasil - Giz Editora, São Paulo, 2008.

FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. A Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência Comentada / Coordenação de Ana Paula Crosara Resende e Flavia Maria de Paiva Vital _ Brasília : Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2008.

GARCIA, Vinicius Gaspar – Pessoas com Deficiência e o Mercado de Trabalho – Histórico e o Contexto Comtemporâneo - Tese de Doutoramento apresentada no Instituto de Economia da Unicamp. Dezembro de 2010.

GUGEL, Maria Aparecida – Pessoas com Deficiência e o Direito ao Concurso Público – Goiânia: UGC, 2006.

LEITE, Flávia Almeida - O Município Acessível à Pessoa Portadora de Deficiência – RCS Editora, São Paulo, 2007.

MORO, Luís Carlos – A Proteção Trabalhista ao Portador de Deficiência Física e as Questões Jurídicas Decorrentes – In: Revista dos Advogados – Direitos das Pessoas com Deficiência; AASP – Associação dos Advogados de São Paulo, número 95, dezembro de 2007.

SASSAKI, Romeu Kazumi – Inclusão - Construindo uma Sociedade para Todos - WVA, Rio de Janeiro, 1997.

SILVA, Otto Marques – A Epopéia Ignorada - A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje - CEDAS/São Camilo, São Paulo, 1987.







[1] Cerca de cem anos depois, nasce neste país o movimento de vida independente, do qual faz parte o autor. Seu principal objetivo foi superar a invisibilidade expressa pela tutela familiar e/ou institucional a que estavam submetidas as pessoas com deficiência. A filosofia de vida independente valoriza o protagonismo das próprias pessoas com deficiência, inclusive na discussão das leis e políticas que lhes dizem respeito (“nada sobre nós, sem nós”).
[2] Neste trabalho não tivemos a oportunidade de pesquisar a situação das pessoas com deficiência em países com alto grau de subdesenvolvimento e pobreza, como em algumas regiões da África, ou, por exemplo, países envolvidos em confrontos militares, como o Iraque ou o Afeganistão. Tais contextos extremos certamente trazem dificuldades adicionais para as pessoas com deficiência, obrigadas a conviver com situações desumanas e não muito diferentes das que viviam aqueles com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas em períodos remotos da nossa História.
[3] Sobre este aspecto, a confusão entre pessoas com deficiência mental (síndrome de down e outras patologias identificadas desde o nascimento) e doença mental (esquizofrenia, psicose e outros distúrbios ocorridos já na vida adulta) foi tão grande que, hoje em dia, utiliza-se o termo deficiência intelectual (ou cognitiva) para fazer distinção quanto à doença mental.
[4] Araújo (1997) e Leite (2007).
[5] Em trabalho anterior – Garcia (2010) – tivemos a oportunidade de debater também outras legislações relevantes, como o “Decreto da Acessibilidade” (5.296/04) e as normas jurídicas que discutem o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Sobre este último, são referências importantes os trabalhos de Diniz (2009) e Brito (2009).
[6] Prevê que legislação complementar “reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. (art. 37, CF 1988).
[7] Embora já tenhamos tratado do Decreto 3.298/99, temos que recorrer a ele novamente na discussão sobre as vagas reservas nos concursos e nas cotas nas empresas, pois, conforme colocado, embora estas legislações fossem do início dos anos 90, somente o Decreto 3.298/1999 as regulamentou.

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