sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Conceito de Deficiência na Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

* Fernando Antonio Pires Montanari

A deficiência é um “conceito”.Essa declaração contida na letra “e” do Preâmbulo da Convenção daOrganização das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas comDeficiência, traz em si uma mudança fundamental de paradigma noentendimento do fenômeno da deficiência. A partir dela, a deficiência, em sendo um conceito, não é mais somenteuma condição pessoal definida por critérios funcionais, como a paraplegia oua surdez, por exemplo.Segundo o conceito de deficiência da ONU, esta passa a ser um fenômeno social, cuja manifestação requer a interação entre a as condiçõespessoais e as barreiras ambientais que impeçam ou limitem a interação social.

No Brasil, particularmente, com a recepção da Convenção pelosistema jurídico com natureza de emenda constitucional, é preciso que o novoconceito de deficiência seja analisado a fundo para que a legislação e mais,a sociedade brasileira, passem a ter uma nova percepção do fenômeno dadeficiência.

É, portanto, o propósito do presente trabalho propor uma leitura doconceito de deficiência inscrito na Convenção tendo por foco a interaçãoentre o indivíduo e seu ambiente.
O conceito de deficiência na Convenção da ONU
O conceito de deficiência trazido pela Convenção estabeleceu umnovo paradigma no trato do fenômeno da deficiência ao destacar os fatoressociais de sua manifestação em relação aos conceitos médico-funcionais atéentão prevalecentes.No caso brasileiro, a legislação sempre se baseou em característicasfuncionais e anatômicas, definidas a partir de critérios médicos, como aquelasque, apresentadas por um indivíduo, o elegeriam para um tratamentodiferenciado, consistente em prestações positivas ou negativas por parte doEstado ou da sociedade civil. Exemplo dos caracteres distintivos destacados pela legislação brasileirapode ser visto na leitura da definição de deficiência que consta do Decreto Nº3.298, de 20 de dezembro de 1999:

I – deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou funçãopsicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para odesempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

Como se vê, é uma definição totalmente fundada em avaliaçõesmédico-funcionais centradas nas características individuais.Esse entendimento da deficiência contrasta com aquele trazido pelaConvenção. Na já citada letra “e” do Preâmbulo, a Convenção diz:

e - Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que adeficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreirasdevidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participaçãodessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Mais à frente, no Artigo 1, diz:

1 - Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo denatureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação comdiversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva nasociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

Nestes termos, a Convenção trata expressamente a deficiência comoum fenômeno resultante da interação entre pessoas e as barreiras sociais queimpedem a plena participação em sociedade, indo além do indivíduo eevidenciando a importância chave do ambiente para sua manifestação.Reivindicação antiga dos movimentos sociais de pessoas comdeficiência, o reconhecimento do meio social como fator de limitação daparticipação social atenua o foco colocado sobre a pessoa pelas antigasdefinições que se restringiam à caracterização da deficiência a partir daslimitações individuais em contraponto com o ambiente ou com algo chamado “padrão normal”.

As definições da Convenção também vão além do paradigma daintegração, de acordo com o qual as pessoas com deficiência deveriam seadaptar às condições de seu meio social, mudando-o para o de inclusão,pelo qual a sociedade é a principal responsável por receber adequadamenteas pessoas com deficiência e dar-lhes condições para uma participação em condições de igualdade.

Não obstante, essa ampliação rumo ao fator ambiental não pode fazerperder de vista a existência de características pessoais inafastáveis nadefinição daqueles que serão o alvo das políticas de ação afirmativa.Essa é a razão pela qual o novo conceito de deficiência somente podeser corretamente entendido a partir do termo chave “interação”, uma vez quea Convenção trata a deficiência como um fenômeno social cujamanifestação requer dois conjuntos de questões em intersecção.

Primeiro, existem as características individuais, traduzidas em limitações,impedimentos, disfunções, que algumas pessoas apresentam e que asdistinguem dos demais no desempenho de algumas atividades.Em segundo lugar, existem as condições ambientais, materiais eatitudinais, que representam barreiras para que aquelas pessoas quepertencem ao primeiro conjunto atuem em seu ambiente social em igualdadede condições. Na manifestação da deficiência, os dois conjuntos de fatores devemestar presentes concomitantemente, sem o que o fenômeno não sematerializa. No entanto, o primeiro, que reúne as pessoas, tem precedêncialógica sobre o segundo. Sem as limitações individuais não há sentido em sefalar em barreiras ambientais.Nesse contexto, embora o fenômeno da deficiência requeira ainteração dos fatores pessoal e ambiental, estes não se confundem. Pelocontrário, possuem realidade própria e um deles possui precedência lógicasobre o outro.Tanto é assim que o Artigo 1 da Convenção, ao firmar o conceito depessoa com deficiência, primeiro vetor do fenômeno da deficiência, assim seexpressa:

1 - Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo denatureza física, mental, intelectual ou sensorial (...).

Portanto, o texto da Convenção deixa claro que as característicaspessoais são parte essencial no âmbito da problemática da deficiência e nãodesaparecem com a importância dada ao ambiente.

Nos termos acima, os impedimentos físicos, mentais, intelectuais esensoriais caracterizam a existência do que podemos chamar de deficiênciaindividual. São assim porque são indissociáveis do indivíduo,independentemente do ambiente. Dito isso, é importante trazer a segunda parte da definição, emconjunto com a parte inicial já transcrita. Diz o Artigo 1 em sua inteireza:

1 - Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo denatureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação comdiversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva nasociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

Aqui novamente a Convenção usa a noção de interação entre pessoa e ambiente, ambiente este que, para que se manifeste a deficiência, deveráapresentar barreiras à participação plena daquelas que apresentemimpedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ousensorial.Essa observação é importante para explicitar que, embora sempre se refira à importância do ambiente, a Convenção não se furta a definir ascaracterísticas pessoais que servem de parâmetro para a manifestação dadeficiência e, com isso, circunscrever o conjunto daqueles indivíduos a que dizrespeito.

Nesses termos, embora a Convenção atribua ao contexto social, deforma inovadora, uma participação decisiva na manifestação da deficiência,reconhece também a precedência lógica das características pessoais namaterialização da deficiência como fenômeno social. E essaprecedência daesfera individual é condição de inteligibilidade de seu propósito.

É importante notar que, ainda que todo o ambiente seja adequado enão apresente mais as diversas barreiras identificadas pela Convenção, umapessoa com paraplegia continuará a apresentar um comprometimento dafunção física. Portanto, o componente individual da deficiência, definido eidentificado por critério médico-funcionais permanece como condição necessária, ainda que não suficiente, para a manifestação da deficiênciapensada como fenômeno social.
Deficiência: um fenômeno com duas dimensões
Assim, conforme aqui se argumentou, o fenômeno da deficiência passaa requerer, para sua manifestação, a conjunção de dois grupos fatores.Primeiro, um conjunto de características pessoais, individuais, denatureza físico-funcionais cujos elementos são determinados por critériosmédicos. Segundo, um conjunto de características sociais, integrado poratitudes e barreiras físicas limitadoras da interação social. É a intersecçãodesses dois conjuntos que determina e delimita a manifestação dadeficiência.

Vamos a um exemplo da interação desses dois universos de fatores.Imaginemos um aluno com paraplegia, usuário de cadeira de rodas, em umasala de aula. Enquanto sua atividade for à de ouvinte da explanação doprofessor, sua deficiência individual em nada o destacará dos demais alunos.Participarão todos nas mesmas condições. Não se manifestará a deficiência.

Suponhamos que esse mesmo aluno seja chamado a expor aos seuscolegas a partir de um palco. Caso não exista acesso para a cadeira derodas, haverá um fator social, ambiental, que fará se manifestar o fenômenoda deficiência representada pela impossibilidade do desempenho das atividades escolares em igualdade de condições.

Por outro lado, caso exista acesso arquitetônico, ou seja, adequação ambiental, o aluno continuará em igualdade de condições com os demais.Em ambas as situações a paraplegia segue inalterada, pelo que é apresença ou não do fator ambiental que determinará a manifestação do fenômeno da deficiência. No entanto, para que o vetor ambiental se façasentir, é requisito indispensável que exista o vetor individual.

A determinação do vetor individual pertence ao mundo da medicina. A identificação das barreiras sociais às diversas ciências que tratam dasociedade. Ter o aluno paraplegia ou não independe da existência ou não deuma rampa ou elevador que permita seu acesso ao palco. Depende, noentanto, da presença de características físico-funcionais de acordo com critérios médicos. A verificação das barreiras físicas ou atitudinais pertence aocampo da arquitetura ou sociologia, por exemplo.
A Convenção e o fim da deficiência
Na esteira da existência desses dois universos de fatores definidores dadeficiência, é possível especular que a Convenção tenha aberto apossibilidade da extinção da deficiência. A lei tem por campo de atuação a regulação do universo social porforça de atribuir aos comportamentos os valores de permitido, proibido eobrigatório. É de se esperar que os dispositivos trazidos pela Convenção, seobservados pelos indivíduos e instituições, levarão à eliminação dos fatoresambientais. Com efeito, a partir de sua edição, certas prestações positivas passam a ser obrigatórias ao mesmo tempo em que certas situações ecomportamentos sociais passam a ser proibidos.

Sendo assim, faltaria ao fenômeno da deficiência um dos requisitospara sua manifestação: os fatores ambientais. Estes estariam superados pelaaplicação da legislação. Um mundo inclusivo estaria estabelecido.De toda a forma, os fatores individuais persistiriam. Somente avançosmédico-biológicos poderiam eliminar os componentes físico-funcionais da deficiência. A existência de um ambiente acessível fisicamente não elimina aparaplegia ou a surdez. Essas consequências decorrem do âmbito de atuação da lei, ainda queconstitucional. A lei não atinge a realidade social em si, somente se presta amodificar comportamentos.
Conclusão
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência deu aofator ambiental um destaque novo e importante na definição da deficiência,modificando sensivelmente o entendimento das questões que a envolvem. Não obstante, essa modificação não vai ao ponto de afastar a outrafaceta do fenômeno, a individual, cuja manifestação se relacionadiretamente com a identificação de características físicas e funcionais e, apartir delas, defina aqueles elegíveis como detentores de direitos sociais especificamente desenhados para a proteção das pessoas com deficiência.

Não poderia fazê-lo, de qualquer forma, sem tornar sem sentido os direitos porela reconhecidos.Entendido em sua essência, esse novo paradigma afasta o estigma quesempre pesou exclusivamente sobre as pessoas com deficiência e chama asociedade a assumir sua parte.

* Fernando Antonio Pires Montanari é servidor público federal, Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, ex-presidente do Conselho Municipal de Atenção às Pessoas com Necessidades Especiais de Campinas/SP (2001/2002).

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