sexta-feira, 29 de junho de 2012

ARTIGO - A popularização de cães-guia no Brasil: Realidade ou Fantasia

Enio Rodrigues da Rosa.

É formado em pedagogia, Especialista em Fundamentos da Educação, Especialista em Educação Especial com ênfase em Inclusão e mestre em educação. Secretario Geral da União Paranaense de Cegos (UPC) Interventor do Instituto Paranaense de Cegos (IPC) e conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência - COEDE/PR.

e-mail: enio.darosa@yahoo.com.br

Neste pequeno artigo, pretendo fazer breves considerações críticas sobre uma meta específica do Plano Viver Sem Limites, do Governo Federal com dotação orçamentária
prevista para 7,6 bilhões de reais em investimentos e gastos com ações voltadas à melhoria de vida das pessoas com deficiência baixa renda.
Refiro-me à  meta que almeja, a estruturação de  cinco centros de treinamento de cães-guia, em cinco diferentes regiões do país.
De acordo com a redação do Plano: "Implantação de cinco centros tecnológicos de formação de instrutores e treinadores  de cães-guia, distribuídos em cada uma das regiões brasileiras.
O primeiro centro será entregue em 2012, no Balneário Camboriú/SC.
Em 2013, serão entregues duas   unidades e, em 2014, finaliza-se com  outras duas.
No ano de 2007 foi sancionada a Lei nº 11.126, de 27 de junho de 2005, que assegura à pessoa com deficiência visual, usuária de cão-guia, o direito de ingressar e permanecer com o animal em veículos e  estabelecimentos  públicos e privados de uso coletivo".
Afim de  refletir e avaliar a implementação dos direitos das pessoas com deficiência, durante o processo de realização da III Conferência Nacional, o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência - CONADE, elegeu quatro eixos, sendo que, no eixo três encontramos escrito: "III - Saúde, prevenção, reabilitação, órteses e próteses...".
No texto base elaborado com a intenção de subsidiar as reflexões preparatórias a III Conferência Nacional, no que diz respeito ao processo de implementação da Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, afirma que o Brasil adotou três eixos fundamentais:
"(a) articulação de políticas transversais para a inclusão e a promoção de direitos e cidadania, com foco nos Direitos Humanos;
(b) tratamento da inclusão sob a ótica do combate à fome e à pobreza...".
Por sua vez, no Plano Viver Sem Limites, as ações estão articuladas em quatro eixos temáticos: "... Inclusão Social: Visa a incluir as pessoas com deficiência na sociedade, tanto no mercado de  trabalho, como no cuidado diário destas pessoas, em situação de pobreza".
Neste sentido,  constatamos na redação dos documentos e no discurso de políticos , bem como na fala de dirigentes de algumas das organizações que representam pessoas com deficiência, que, as ações do Plano Viver Sem Limites, apresenta  dois focos bem definidos: A afirmação das  necessidades deste segmento social como direitos que demandam ações concretas de políticas públicas e,  a priorização no atendimento das necessidades das pessoas com deficiência mais pobres.
No entanto, em nossa avaliação, a meta eleita como objeto de análise deste artigo, entra em contradição com o  previsto no Plano, e vem sendo constantemente e insistentemente sustentado pelos representantes do Governo Federal.
Na estruturação destes  centros treinadores de cães guia, o Governo Federal pretende um investimento de alto custo financeiro, (são mais de cem milhões de reais) a ser retirado do orçamento público , imaginando que , equivocadamente  nesta meta poderia estar a redenção da falta de mobilidade das pessoas cegas.
Daí ser objeto do presente  artigo, construir  uma análise que procure apreender o conteúdo concreto deste  pensamento, e, demonstrar  o quão equivocado pode estar este investimento, e , o quanto os  resultados prático, podem ser duvidosos, sob o aspecto pedagógico e de atendimento quantitativo de pessoas cegas a serem beneficiadas.
Resta claro, que  nossa análise problematiza um tema que envolve diretamente a vida concreta de milhões de pessoas reais, de carne e osso, que mesmo precisando muito,
não conseguem se quer uma simples bengala quando procuram os programas e serviços governamentais.
Mesmo nos dias de hoje, os governos, em todas as esferas e níveis, não estão conseguindo garantir às pessoas cegas pobres deste país, nem mesmo o "feijão com arroz" e parecem  prometer o "bife acebolado".
Considerar-se –ia  meta realmente séria e preocupada com a verdadeira situação, a avaliação dos impactos do cão-guia no orçamento destas pessoas usuárias de baixa renda e, cuja solução mais prática, estaria na oferta de bengalas de boa qualidade bem como, treinamento em orientação e mobilidade.
De acordo com pessoas cegas usuárias, ou com familiares provedoras de pessoas cegas que utilizam cães-guia, somente com a ração, um cachorro destes, considerado de grande porte, custa em ração adequada, aproximadamente 300.00 (trezentos reais) / mês..
 Um quilo destas rações de qualidade e balanceadas que o tipo de animal necessita, equivale ao preço de um quilo de filé argentino, ou seja, em torno de R$ 15,00 a R$ 20.00 (vinte) “ mangos”, utilizando aqui, uma expressão cunhada  na gíria.
Se somarmos à esta despesa, outras tantas, obrigatórias, como, as constantes visitas à veterinários e vacinação anual, pode-se chegar à cifra de aproximadamente, R$ 200,00; isto tudo, sem adentrar ainda nas questões de estresse animal decorrentes  do tipo de vida a que são submetidos estes animais. Numa avaliação sumária, para que este animal consiga ter qualidade de vida e oferecer o serviço necessário, serão precisos, por parte de seu proprietário, o desembolso de mais de  500.00 (quinhentos reais) / mês.
Isso equivale, a quase o valor do BPC que milhões de pessoas cegas pobres recebem por mês do Governo Federal para conseguirem sobreviver, custeando alimentação, moradia, vestimentas e outras necessidades básicas.
Diante disso, que me perdoem a franqueza, mas,  para que uma pessoa cega baixa renda, beneficiária ,  mantenha um animal desse com mínimo de qualidade de vida,  o Governo Federal teria de criar e conceder também o "bolsa cachorro".
Do contrario, os milhões de reais do orçamento público investidos na estruturação desses centros de treinamento de instrutores, será um verdadeiro “tiro no pé” das pessoas cegas de baixa renda, além da previsão, como normalmente acontece com o dinheiro público quando alguns aventureiros colocam a mão.

Diante desta promessa aparentemente atraente, custeada com o nosso dinheiro, algumas indagações são necessárias. Depois desses centros estruturados, quem e com que dinheiro eles serão mantidos? O Governo paga para estruturar e após vai continuar pagando para mantê-los? Quem vai pagar pelo cachorro e pelo treinamento da pessoa
cega que pretende utilizar o cão-guia? Para que seja respeitado o direito a igualdade de oportunidades, todas as pessoas cegas pobres interessadas terão acesso com facilidade ao cão-guia, ou apenas algumas mais privilegiadas conseguirão o bicho? Depois de tudo estruturado com o dinheiro público, os cães serão distribuídos  gratuitamente ou o negócio será entregue para alguns "empreendedores" preocupados em ganhar dinheiro com a exploração deste mercado?
Sim, mercado porque mesmo o cão-guia também já foi transformado numa mercadoria. Contudo, sugerimos aqueles interessados na exploração deste comércio, a realização de uma pesquisa de mercado procurando identificar se existe possibilidade de viabilidade econômica do negócio, baseado nas leis da livre iniciativa e na competição.
Na nossa visão (só para avisar, eu sou cego), acreditamos que não haverá "clientes" com dinheiro disponível suficiente, interessados na compra de um cão-guia.
 Na realidade, ainda tem muitas pessoas cegas e não cegas, com interesses os mais variados, surfando na onda do "Jatobá". A questão do cão-guia foi transformado numa espécie de modismo, quase que um estilo de vida, com todo o “glamour”  próprio do meio, depois que algumas redes de TV, começaram colocar pessoas cegas na tela usando cães-guia.
Se o uso desses animais já é relativamente comum nos chamados países desenvolvidos, dado a realidade econômica diferenciada das pessoas cegas daquelas nações, num país ainda tupiniquim em que a maioria das pessoas cegas ainda vivem em condições de vida degradantes, pensar a popularização do cão-guia como recurso de mobilidade, parece uma fantasia que vai além do que a nossa imaginação criativa da conta de compreender e apreender.
Além do mais, se lutamos pela libertação das pessoas cegas em relação as pessoas não cegas, questionamos se neste caso não cria-se uma relação de dependência entre as pessoas cegas e os animais, de tal sorte que ambos viram prisioneiros. Nos casos que conhecemos ou ouvimos relatos, cria-se uma intimidade sentimental entre esses dois seres, de modo que esta relação acaba sendo prejudicial ao animal que perde o direito e a liberdade de ser apenas cachorro.
Os defensores e usuários dos cães-guia, ao menos por um instante, deveriam se colocar na posição desses animais e perguntarem como se sentiriam sendo submetidos a tais condições de exploração, dias após dias, no decorrer de meses e anos até o fim de suas vidas. Se para as pessoas cegas usuárias dos cães-guia pode parecer uma facilidade e comodidade, para os animais isso deve ser um verdadeiro saco (nos perdoem pelo uso chulo do termo). Para que as pessoas cegas aparentemente ganhem independência e autonomia, os cachorros perdem a suas vidas, na medida que já não têm como escaparem da "prisão" que foram submetidos.
Do ponto de vista da verdadeira independência e autonomia das pessoas cegas, sob o aspecto pedagógico e psicológico, o uso do cão-guia como única alternativa de locomoção, pode trazer muitos prejuízos na formação e desenvolvimento das aptidões mentais, responsáveis pela concentração, atenção, audição, memorização e outras funções funcionais do aparato psicológico e do sistema nervoso central.
Falamos isso a partir de uma concepção que temos sobre a formação e desenvolvimento das aptidões físicas e mentais, as quais são comuns nas pessoas cegas e não cegas.
Porém, para uma pessoa cega andar sozinha com independência e segurança, tendo nascida ou adquirido cegueira, vai depender das condições educacionais proporcionadas
pelo meio social onde esta pessoa está inserida. Com isso, estamos precisamente afirmando que a aptidão de concentração e atenção, ambas aptidões cerebrais funcionais
que se formam e se desenvolvem com o recurso da audição e são indispensáveis na locomoção, não são inatas e nem tampouco se desenvolvem espontaneamente na consciência das pessoas, cegas ou não.
Isso significa dizer que, quanto mais as pessoas cegas andarem sozinhas com o uso da bengala, maiores e melhores são as possibilidades delas formarem e desenvolverem
as aptidões especificamente humanas que são necessárias na formação de um aparato psicológico e um sistema nervo central, preparados para enfrentar os desafios e os obstáculos que as pessoas cegas precisam superar todos os dias.
Uma coisa é andar sozinha nas ruas, tendo de enfrentar e superar por conta própria as barreiras. Outra bem diferente é andar nas ruas dependente  de um animal com as suas limitações evidentes. Todavia, não descartamos de tudo a possibilidade do uso do Cão-guia, mas em locais e situações específicas. Existem lugares onde as condições geográficas e ambientais não proporcionam as melhores condições dos pontos de referência que as pessoas cegas usuárias da bengala necessitam na locomoção
como indicação de direcionamento.
Se temos resistência quanto ao uso do cão-guia, muito mais resistência ainda temos quando vemos a quantidade de recursos financeiros públicos, serão investidos
e na estruturação desses cinco centros.
Num país onde nem mesmo uma simples bengala as pessoas cegas conseguem receber gratuitamente do poder público, por meio das suas políticas sociais, colocar este montante de dinheiro nesses centros, significa inverter a ordem das prioridades.
Enquadrada na condição de órtese, a bengala consta entre os itens que deveriam ser distribuídos pelos programas de reabilitação do SUS.
Mas, as coisas não são bem assim;  quem já precisou de uma bengala e procurou junto às Secretarias Municipais de Saúde, sabe do que estamos falando.
Mesmo numa capital de Estado, como é o caso de Curitiba, aquilo que se constitui num direito é constantemente negado, diante dos obstáculos encontrados quando alguém procura a saúde pública em busca de uma bengala. Primeiro, é a dificuldade com o levantamento de informações corretas sobre quem distribui, os procedimentos adotados
e onde fica localizado o serviço encarregado pela compra e distribuição das bengalas. Mas isso ainda não é tudo, porque uma pessoa cega que pretenda obter uma bengala via  SUS, necessitará  de requisição médica constatando a necessidade e autorizando a dispensa da órtese.
Ocorre que uma consulta com um médico especialista, oftalmologista, desde a marcação de consulta até o efetivo atendimento, pode levar aproximadamente de seis a oito meses. Vencida esta primeira fase, depois vem mais um longo período de espera, pois somente após a compra da bengala, esta  será providenciada.
Com um pouco de sorte, quem sabe depois de um ano, se não houver nenhum tropeço e embaraço pelo caminho, a pessoa cega terá a sua bengala.
 Esta triste realidade persiste sem solução não é de hoje. O governo federal, os governos estaduais e os governos municipais, mesmo tendo previsão legal e constando na política de saúde, nada ainda fizeram sobre esta situação vergonhosa que atinge as pessoas cegas pobres.
Com efeito, não são poucas as pessoas cegas, os familiares de pessoas cegas e amigos de pessoas cegas, que nos procuram no Instituto Paranaense de Cegos (IPC),
em busca de informações sobre onde obter uma bengala. Quando isso acontece, só nos resta dizer que infelizmente, os governos que tanto falam em favor das pessoas cegas pobres, pouco ou nada fazem para resolver efetivamente problemas que são simples. Pior: não conseguem nem mesmo resolver o problema das bengalas e já ficam prometendo estruturar centros de treinamento de cães-guia.
 Na realidade, a bengala é um instrumento de primeira necessidade e tão útil na vida cotidiana das pessoas cegas, que a produção e distribuição deveria ser muito facilitada. Não faz sentido o fato das pessoas cegas precisarem passar por médicos oftalmologistas apenas para conseguirem uma autorização indicando a necessidade
da bengala. Para descomplicar, isso deveria e poderia perfeitamente ser feito pelos programas especializados na área da deficiência visual, a partir de uma avaliação que constate a necessidade do uso da bengala.
 Os governos (União, Estados e Municípios), através de entendimento comum, definindo procedimentos  e formas de custeio, deveriam adquirir bengalas em quantidade e repassar para que a distribuição fosse feita pelas organizações das pessoas com deficiência visual.
 No Estado do Paraná,  houve tempo em que os Centros de Atendimento Especializados na área da Deficiência visual, mantidos pela Secretaria de Estado da Educação (SEED), possuíam bengalas para distribuição gratuita cujas pessoas  cegas, estivessem e fossem inscritas para aulas de Orientação e Mobilidade.
 No entanto, hoje, mesmo aquelas pessoas que tem dinheiro e estão precisando comprar bengalas, também encontram dificuldades. São pouco os lugares onde se acha bengalas
no Brasil. Se não bastasse isso, ainda existe três agravantes: a) os atendimentos são ruins e demorados; b) as bengalas são de qualidade questionáveis; e c) os preços são altos, considerando-se a qualidade do produto e o atendimento que deixa muito a desejar.
 Nesse restrito mercado , uma bengala relativamente de boa qualidade, dessas que são mais utilizadas pelas pessoas cegas brasileiras, custa em média 70.00 (setenta reais). Muitas pessoas cegas pobres que ganham apenas o BPC, precisam ver seu beneficio ainda mais reduzido, quando necessitam arcar com mais esta despesa.
Não tivemos a paciência de fazer a conta, mas acreditamos que com os valores gastos na estruturação dos cinco centros de treinamento de instrutores de cães-guia, seria possível comprar e distribuir pelo menos duas bengalas para cada pessoa cega pobre deste país. Com isso, além de garantirmos o direito de acesso a bengala, ainda estaríamos evitando que as pessoas cegas pobres precisassem retirar dos parcos salários que recebem (quando recebem), certas quantias para pagarem por uma bengala.
 Ademais, o dinheiro dos centros também poderia ser investido no desenvolvimento ou aperfeiçoamento de bengalas com alguns dispositivos tecnológicos mais avançados.
Já existem, no Brasil, varias experiências interessantes que poderiam ser incentivadas e apoiadas com recursos públicos.
 Assim, em vez do Governo Federal colocar esta quantia de dinheiro na estruturação de centro de treinamento de instrutores de cães-guia, deveria aproveitar melhor esses recursos, estruturando, nas Universidades Federais Tecnológicas, núcleos de produção não apenas de bengalas, mas inclusive de outros equipamentos educacionais que são utilizados na educação das pessoas com deficiência visual. Em algumas dessas Universidades, já existem experiências que poderiam perfeitamente serem melhoradas
e ampliadas com o suporte financeiro da União.
Por falta de informação de muitas pessoas cegas, inclusive de professores de cegos e cegas, existe um certo preconceito quanto ao uso da bengala. Muitas pessoas cegas, por medo ou receio de assumirem a cegueira, num primeiro momento, apresentam resistência de usar a bengala. Precisamos fazer um trabalho consistente e persistente de convencimento sobre as pessoas cegas que estão sendo mal instruídas sobre a importância e a necessidade do uso da bengala.
O uso da bengala, é uma necessidade primordial que vai garantir as pessoas cegas a sua verdadeira autonomia e independência, sem as amarras do cão-guia. Pensemos na vida atribulada de uma pessoa cega trabalhadora usuária de cão-guia e ao mesmo tempo também usuária de transporte coletivo, principalmente daquelas localidades periféricas onde os ônibus andam abarrotados de pessoas apressadas que estão sempre correndo para não perderem o horário.
Quem é trabalhador e já andou de ônibus do transporte coletivo, sobretudo nas cidades maiores, sabe muito bem que existem certos horários que nem mesmo as pessoas
cegas são respeitadas, quanto mais então o cão-guia. Esses cachorros não estão preparados para enfrentarem, todos os dias, semanas após semanas, meses após meses
e anos após anos, as intempéries do tempo (chuva, frio, calor, etc.). Sabe um daqueles dias de chuva forte que a pessoa cega sai de  casa com o guarda-chuva na mão, enquanto o cachorro fica ensopado de água. Aí a pessoa cega embarca naquele ônibus lotado de pessoas que também estão molhadas e vão precisar dividir com o cachorro
o mesmo espaço apertado como sardinhas em lata.
Contraditoriamente, para que as pessoas cegas possam acessar os ambientes público e privados de uso coletivo, acompanhadas pelos cães-guia, esses animais precisam estar devidamente limpos e com as vacinas em dia. Nossa pergunta é: cachorros de pessoa cega pobre e trabalhadora, que mora em localidade sem asfalto em casa sem maiores condições de higiene, poderá estar o tempo todo bem limpo, com as vacinas em dia, perfumado e cheirosinho?
Ora, o uso de cães-guia pode até parecer uma coisa interessante e atraente, mas para certas pessoas cegas que não precisam enfrentar a “ pauleira” do dia-a-dia agitado e corrido dos trabalhadores. O cão-guia não é para qualquer pessoa cega. Uma coisa é ser pessoa cega pertencente a famílias  paupérrimas, vivendo em condição humana degradante; já outra,  muito diferente é ser também pessoa cega pertencente a família rica, vivendo em residência de luxo, com carro e motorista particular. Ambas são cegas, mas levam vidas totalmente distintas, de tal sorte que a cegueira como diferença desaparece. Se para a pessoa cega rica o cão é apenas mais um adereço de luxo, para a pessoa cega pobre o bicho transforma-se num verdadeiro problema.
 Por isso, o uso da bengala livra as pessoas cegas desses e tantos outros constrangimentos sociais que podem ser evitados. Se ensinadas desde cedo quanto a postura corporal correta e o uso adequado da bengala, as pessoas cegas usuárias de bengalas, despertam admiração e curiosidade pela sua elegância no andar.
 Nesta perspectiva, em vez de colocar dinheiro no treinamento de instrutores de cães-guia, os governos poderiam investir na formação  de professores de orientação e mobilidade. Na portaria que o Ministério da Saúde editou, ainda em 2008, com a finalidade de estruturar os serviços de reabilitação na área da deficiência visual (aliás, também ficou apenas na promessa, já que nada ainda foi feito), exige-se professores de orientação e mobilidade, formação acadêmica que vai além do que normalmente encontramos nos professores especializados. Em outras palavras, está faltando professores com formação adequada para a realização das atividades de orientação e mobilidade. Contraditoriamente, o dinheiro que poderia ser investido na formação de professores especialistas devidamente preparados, será investido na formação de instrutores de cães-guia.
Como constatamos, um plano realmente muito ambicioso, com dotação orçamentária de quase oito bilhões de reais, cujo foco é a garantia dos direitos das pessoas com deficiência mais pobres, contempla uma meta que entra em contradição com o seu objetivo estratégico.
 Diante desta situação, nos perdoem pela franqueza e objetividade, mas muitas pessoas cegas pobres deste país, que ainda vivem em condições sub-humanas de moradia nas periferias das cidades brasileiras, não têm nem mesmo uma casa preparada para receber e abrigar com os devidos cuidados necessários,um desses cachorros de raças que algumas pessoas cegas elitizadas utilizam para desfilarem esbanjando soberba.
 Somente quem não conhece a triste e dura (aliás, muito dura mesmo) realidade das pessoas cegas pobres deste país, pode imaginar que com a estruturação de cinco centros de treinamento de cães-guia, o Governo Federal, em colaboração com os governos de Estados e Municípios, vai retirar essas pessoas do atual estado de abandono em que se encontram, muitas ainda literalmente trancafiadas em quartinhos escuros nos fundos de quintais de barracos de periferias de todas as cidades brasileiras.
Portanto, se o real e verdadeiro objetivo do plano Viver Sem Limites é, de fato, promover a inclusão pela via do combate a pobreza, os recursos financeiros desta meta estão sendo muito mau direcionados. Num país onde as pessoas cegas pobres não têm sequer o direito assegurado de receberem dos governos nem mesmo uma simples
bengala, falar numa política pública com milhões e mais milhões gastos do orçamento público, no treinamento de instrutores de cães-guia, procurando impingir a falsa idéia que na utilização desses animais poderá estar a redenção da mobilidade das pessoas cegas, não é só um desperdício do nosso dinheiro, mais também e sobretudo uma irresponsabilidade política e pedagógica, com a qual não podemos concordar.Um dia ouvi nas palavras de um dirigente do sindicato dos servidores municipais de uma dada cidade, que estavam em greve, numa plenária diante do prefeito, a seguinte
colocação durante a sua intervenção: "o bom censo diz que eu deveria me calar neste momento, mas a minha consciência diz que eu devo falar". De fato, muitas pessoas não falam porque temem as represarias que podem sofrer quando dizem certas verdades que deveriam ficar ocultas.
Não obstante a decisão política do governo federal, queremos deixar claro que as nossas criticas são direcionadas principalmente algumas pessoas cegas, técnicos e especialistas da área da deficiência visual que certamente defenderam a colocação desta meta no plano Viver Sem Limites.
 Por isso, o dia que cada pessoa cega pobre deste país tiver garantido pelo menos duas bengalas de boa qualidade, uma para bater e outra guardada na bolsa, por uma questão de precaução no caso da quebra da outra, quem sabe nós possamos rever o nosso posicionamento e aceitarmos o gasto de dinheiro público no treinamento de instrutores de cães-guia.
Se esta meta com os seus respectivos valores financeiros não forem revistos no plano, na nossa modesta opinião, o plano não vai atingir o seu real objetivo de fazer a inclusão dando prioridade aos  investimentos em ações direcionadas para atender as reais e verdadeiras necessidades das pessoas cegas mais pobres.
Francamente, esperamos que isso seja debatido e reavaliado durante a III Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Na mesma direção, esperamos também que este texto sirva de contribuição e possa suscitar discussões e reflexões no interior das organizações de base das pessoas cegas.
Reafirmamos: se as organizações de base, com representatividade e legitimidade política que atuam na defesa dos direitos das pessoas cegas, não questionarem esta e outras situações semelhantes, nós vamos continuar sofrendo as conseqüências  de decisões definidas por pessoas que não vivem no mundo real da maioria das pessoas cegas deste país.

Concluímos assim este texto, tomando de empréstimo um refrão do que considero ,  uma bela música do cantor Belchior, intitulada Tributo a John Lennon: "Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixe que eu decida minha vida. Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol, porque bate lá meu coração..."
Nada pessoal contra o cão-guia, mas realmente preferimos que as pessoas cegas andem sozinhas com o uso da bengala. Isso custa bem mais barato e pode ser feito imediatamente, basta apenas vontade política dos nossos governantes. Aliás, é bom que se diga, pelo que parece, o problema do Brasil não é falta de leis e nem tampouco de dinheiro. A questão é efetivamente política.
 Curitiba, junho de 2012.

 As citações estão no Plano Viver Sem Limites, no regulamento da III Conferência Nacional e no texto que subsidia às discussões preparatórias a Conferência.

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