sábado, 21 de maio de 2011

Sobre o modelo social da surdez

por Anahi Guedes de Mello, sexta, 20 de maio de 2011 às 16:27

“[...] Em relação aos expostos sobre o universo da surdez, o capítulo sobre O Impacto do Conceito de Cultura no Conceito de Homem (GEERTZ, 1989) pode ser usado para trabalhar o conceito de cultura na perspectiva da surdez, e entender de que maneira se pode interpretar esta idéia de “Cultura Surda” desde um ponto de vista antropológico e, por outro lado, até que ponto esta idéia por parte do coletivo de pessoas surdas pode ser tomada desta maneira. Como podemos pensar a noção do biológico, do psicológico, do social e do cultural no caso da surdez? Afinal, como brilhantemente escreve Geertz:

Whitehead uma vez ofereceu às ciências naturais a máxima “Procure a simplicidade, mas desconfie dela”; para as ciências sociais ele poderia ter oferecido “Procure a complexidade e ordene-a.” O estudo da cultura se tem desenvolvido, sem dúvida, como se essa máxima fosse seguida. A ascensão de uma concepção científica da cultura significava, ou pelo menos estava ligada a, a derrubada da visão da natureza humana dominante no iluminismo. [...] A perspectiva iluminista do homem era, naturalmente, a de que ele constituía uma só peça com a natureza e partilhava da uniformidade geral de composição que a ciência natural havia descoberto sob o incitamento de Bacon e a orientação de Newton. [...] Meu ponto de vista, que deve ser claro e, espero logo se tornará ainda mais claro, não é que não existam generalizações que possam ser feitas sobre o homem como homem, além de que ele é um animal muito variado, ou de que o estudo da cultura nada tem a contribuir para a descoberta de tais generalizações. (GEERTZ, 1989: 45-46; 52)

Com base nesses argumentos de Geertz, todas as concepções que justificaram a existência de uma cultura surda, centrando-se na existência de uma língua materna dos surdos, a língua de sinais, não serve. Não serve porque esse conceito de cultura surda leva implícita a idéia de exclusão, de gueto. Em outras palavras, a sociedade em seu conjunto deve reconhecer e aceitar a existência de uma cultura dentro da cultura sem que esse esforço tenha uma contrapartida. Quer dizer, os ouvintes devem compreender, aceitar e adaptar-se às necessidades lingüísticas dos surdos, mas não vice-versa. Neste sentido, mesmo que o modelo social da deficiência surja como uma contrapartida ao modelo médico, assinalando que a deficiência é um fenômeno social e faz dela o foco da defesa de direitos humanos, o “Orgulho Surdo” me parece incômodo porque a teoria antropológico-cultural da surdez se reivindica como a mais extrema do modelo social da deficiência, já que parece partir de um “estado de natureza”, em que a condição física da surdez implica, por si só, um status social irredutível. Outrossim, concordo com alguém quando me disse que a surdez desvia o indivíduo surdo da cultura generalizada e o induz a um comportamento que tem, por conseqüência, uma característica cultural própria. Mas daí a dizer que a surdez é um fenômeno cultural existe uma distância intransponível. É querer admitir que o surdo traga dentro de si a semente da cultura surda. Para que isso fosse verdade, todos os surdos deveriam nascer sem o aparelho auditivo, nem os lobos temporais, não sendo, portanto, biologicamente programados para ouvir.

O modelo social tem cumprido seu rol de despertar a consciência de uma sociedade que leve em conta as diferenças desde a perspectiva da deficiência, mas, por outro lado, também não se pode cair no extremo oposto do modelo médico ao se negar o corpo e a base biológica de uma realidade que faz das pessoas com deficiência diferentes. Assim, no caso dos surdos, um ouvido que não escuta é um sentido que falta. Isso é claramente uma deficiência, ainda que a pessoa tenha outras formas de escutar ou compensar a falta de audição. Se antes falávamos do surdo ideal – aquele que fala, hoje pensamos ainda no modelo ideal – aquele surdo que se comunica pela língua de sinais. Dizer que é somente uma diferença não é um eufemismo? Admitir que temos uma deficiência auditiva, ou qualquer outra, não importa, não significa admitir que somos menos nem que não nos sentimos completos. A essência de sermos seres humanos, nossa dignidade, não se vê diminuída se temos menos membros, órgãos ou funções biológicas, ou ainda se nosso corpo funciona de maneira deficiente. Não devemos confundir o ser com o ter porque o corpo e o biológico estão no campo do ter, não do ser, e certamente interage com os planos psicológico, sociológico e cultural. Não há lógica na vida humana. E se há, é sempre retrospectiva, nunca prospectiva. Até mesmo porque a condição de ser pessoa com deficiência, como acontece com os demais grupos minoritários, é a de quem clama por superar-se.”

In.: MELLO, Anahi G. O modelo social da surdez: um caminho para a surdolândia? Mosaico Social – Revista do Curso de Graduação em Ciências Sociais da UFSC, Florianópolis: Fundação Boiteux, nº 3, ano 3, dez. 2006. p. 55-75.

Obs: (A autora é surda e antropóloga)

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