sábado, 30 de abril de 2011

Vulneração e Mídia no Cotidiano das Deficiência

Imagem Publicada - um homem com deformidades físicas no rosto, na cabeça, denominado Homem-Elefante, que esta atrás de uma porta de correr, com uma grade de ferro de porta de elevador, que sugere seu encarceramento e isolamento. Foto, em preto e branco, de divulgação do filme que levou ao público a dramática história de John Merrick(1862-1890), um cidadão inglês, que por ter a maior parte de seu corpo deformado por uma síndrome neurológica, a Neurofibromatose múltipla. Ele foi por longo tempo considerado um "deficiente mental", e viveu exposto, espancado e explorado em um show ambulante, até que um cirurgião, Dr. Frederick Treves, o levou para um hospital, e, dentro das limitações de seu tempo (a chamada era Vitoriana) buscou promover um pouco de dignidade a quem estava sendo motivo apenas do riso e do temor em espetáculo circense. Ele viveu em Londres onde hoje a pompa e circunstância ainda encobrem muitas formas de discriminação, segregação e exploração midiática desses que são chamados de "anormais ou aberrações humanas".

"Assim como o conceito de deficiência é construído e contextualizado, as vulnerabilidades também têm gênese social como um discurso em construção e em questionamento pelos bioeticistas, como faz Macklin, ao indagar: ”O que torna indivíduos, grupos e até países inteiros vulneráveis? E por que a vulnerabilidade constitui uma preocupação da bioética?”. Essas duas perguntas, segundo a autora, devem ser afirmadas e respondidas pela existência de que diante do poder e da exploração de sujeitos vulneráveis, temos de ter uma postura ética. Uma postura de cunho bioético e de proteção.

Essas posturas e questões têm grande amplitude, indo desde a ética clinica, da ética em pesquisas que envolvem seres humanos, e, em especial, na ética em políticas públicas. No campo político, ou melhor, dos biopoderes, ao avaliarmos a condição de pessoas vulneradas, com sua possível posição de exploração, podemos incluir as pessoas com deficiência, que, historicamente, estiveram em situação de vulneração e exclusão pelos estigmas a que foram submetidos".


Esses dois parágrafos acima fazem parte de um artigo que publiquei na Revista Saúde e Direitos Humanos, Ano 6, nº 6, 2009. O tempo passou e cada dia mais me convenço das minhas proposições de cunho bioético para o campo das deficiências. Me sinto reforçado na indagação de Mackin quando assisto na TV a concepção que vem sendo midiatizada sobre os que são chamados de ''portadores'' de deficiências. Creio que a última atitude bizarra nos foi apresentada por um programa de Comédia onde se ridicularizava, de forma grotesta e proposital, a condição de pessoas com Autismo. A chamada Casa dos Autistas, em seu processo de reprodução dos estigmas, conseguiu gerar indignação, repúdio e ações que incluiram atitudes do Ministério Público e de parlamentares na Câmara Federal.

Ainda não conseguimos demolir alguns dos estigmas que são impostos a PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. Isso mesmo, são sujeitos COM direitos humanos, são cidadãos e cidadãs, e sua nomeação e terminologia são muito importantes. NÃO PODEMOS RECUAR NO AVANÇO CONQUISTADO COM A CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. A sua condição humana diferenciada e singular não deve ser nomeada como ''necessidades especiais'' e muito menos como ''invalidez'' ou ''doença'', e com estes paradigmas biomédicos, ainda em ação, promover sua espetacularização pela TV.

Os autistas podem ser também artistas. Mas não sem respeito às suas vulnerabilidades. Não se promovendo sua caracterização como ''alienados'' ou ''bobos da corte''. Muito menos como um grupo que, se confinado, à moda do BBB, possa constituir uma casa da loucura sem racionalidade e comportamentos considerados ''anormais'. O que a MTV promoveu foi a sua vulneração pela esterotipia e pela estigmatização tele-visiva.

Nesse sentido é que a busca de um olhar para além dos discursos vigentes sobre pessoas com deficiência se faz imprescindível. Temos que, pesquisar como se constroem novos paradigmas, agora com a ativa participação dos sujeitos com deficiência, como o que ocorreu na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nações Unidas – ONU – dezembro de 2006). Historicamente este tratado internacional foi antecedido na América Latina, pela chamada Convenção da Guatemala, em 1999, que confirmou a existência primordial de fatores sociais e econômicos como geradores de situações de deficiência.

Esta Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas com Deficiência, proclamada em 1999, foi reconhecida pelo Governo Brasileiro, através do Decreto Nº 3956 (de 08/10/2001), afirma que as deficiências decorrem/surgem da interação das características de cada um com a produção de barreiras na sociedade para as suas diferenças, que ao limitar a suas capacidades de exercer as atividades da vida diária, portanto, são “causadas ou agravadas pelo ambiente econômico ou social”.

E suas incapacidades tornam-se agravadas com o uso, aético e inconsequente, na socialização de estereótipos ou estigmas impostos aos que são chamados de deficientes, anormais, loucos, autistas ou qualquer outro termo ou diagnóstico aplicável aos fora da norma ou da normalidade científica.

Quando produzimos a hiperexposição midiática, de forma ridicularizada, de um ou mais grupos de pessoas com alguma forma de diferença, para um grande público consumidor, os telespectadores em alienação acrítica, estamos reforçando sua condição deficitária como monstruosidade, como Mal e enfermidade. Estamos os estigmatizando para nos mantermos em busca de uma sacrossanta idealização de pureza, normalidade, sanidade ou perfeição.

O grotesco e o hilário não podem ficar associados, por mais audiência que provoquem, a uma exploração, hoje hipermidiatizada, das imagens, cenas, situações ou aparências diferenciadas vividas por pessoas com deficiência ou outras formas de incapacidades. A MTV fez isso e me levou de volta ao passado. Retomei, quando vi indignado o que eles chamaram de a Casa dos Autistas, antigos personagens do cinema, do teatro e da literatura.

Eles voltaram ''assustadoramente'' a minha memória. Eles, por suas ''taras, defeitos, manchas, estigmas ou corcundas", podem ser denominados ''homens e mulheres elefantes'', ou de neo- Quasímodos. É, então a hora de rever e relembrar um filme: O Homem Elefante (David Lynch). Eles e elas, com suas deformidades físicas (que presupõem as mentais) foram, são e devem ser cobertos com burkas ou máscaras que nos ajudem a evitar o olhar espelhado para sua ''feiura e miséria humana''. A nossa visão narcísica pode sofrer profundos abalos com uma possível identificação projetiva com esses seres anômalos.

A eles e elas, historicamente, se destinavam os espetáculos grotescos dos circos dos horrores ou, então, como o médico interpretado por Anthony Hopkins, um pequeno quarto de hospital para que pudessem ser ''examinados'', "diagnósticados", "expostos como um caso clínico aberrante". E, nas boas intenções da medicina da época, "protegidos e cuidados", apesar de terminarem sendo apenas mais um objeto de pesquisa: cobaias humanas.

O personagem real John Merrick consegue, no filme e na sua história de vida, até impressionar uma atriz, mas não consegue ser amado por ela. Não podemos nos encontrar em um Outro tão aberrante de nossa imagem e semelhança. Ainda que ele possa ser também um artista,ou mesmo um poeta. Não aprendemos ainda, bioéticamente, a amar as cobaias. Muito menos os monstros em nós.

Por isso é que seria uma parcial reparação se o "preconceituoso" canal de TV, após suas desculpas públicas e já notórias, pudesse realizar um Ciclo de Cinema e Deficiência, seguido sempre com debates esclarecedores e críticos, a serem conduzidos pelas próprias fontes de ''diversão'', ou seja pelas pessoas com deficiência.

Quem sabe, como já fez Chaplin, ampliassemos a sensibilização das platéias entorpecidas, em especial dos canais abertos, com o surgimento do direito à diferença, com o direito à audiodescrição, com o direito ao close caption e as legendas (para os surdos), com o direito à provocação do espanto e da indagação diante de outras formas de ser e estar no mundo e na Vida. E para tanto nem precisaríamos nos tornar ''mudos e em preto e branco".

Senhores e Senhoras, Respeitável Público: - agora no meio do palco, no meio do picadeiro, fora das jaulas, dentro do coração e das mentes de nossos telespectadores, novos atores com suas cegueiras, bizarrices, paralisias cerebrais, deficits, transtornos, distúrbios, surdez e incapacidades de toda ordem. As telinhas, ou melhor, todas as telas irão se encher de panorâmicos seres humanos que nos espelharão, nos confrontarão e nos obrigará a buscar outras maneiras de os respeitar, re-conhecer e amar.

Em cena, os Autistas, que não cabem, por sua pluralidade, nessa mísera casa dos comediantes da MTV, irão nos levar a outras sensibilidades, outras máquinas desejantes, outros devires, outras formas de afetar e sermos afetados, a desejada criação de novas cartografias para o viver e Vida. Para além de todas as vulnerações e suas perpetuações
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formado em Medicina, com especialização em Psiquiatria, exercendo atividades no campo da Saúde Mental, em Psicanálise e Psicoterapia, tendo como formação a Análise Instituciona, pai de duas crianças com Paralisia Cerebral. criador do DEFNET - Centro de Informática e Informações sobre paralisias Cerebrais, além da ativa militância na defesa de Direitos Humanos de Pessoas com Deficiência

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