sábado, 12 de janeiro de 2013

A sentença judicial que não pode nos esterilizar!!


CRIME AOS DIREITOS HUMANOS

Izabel de Loureiro Maior*

Como se não bastassem as desavisadas e lesivas opiniões de uma escritora conhecida e de uma psicóloga desconhecida a respeito do brutal acontecimento contra crianças norte americanas, somos surpreendidos com uma sentença judicial de esterilização de uma jovem pobre com alegada deficiência intelectual. Agora pasme! O fato é no Brasil, no interior de São Paulo e está em vias de se concretizar.

A grande mídia deu espaço a duas pessoas para que expusessem sandices já rebatidas de forma brilhante por especialistas, jornalistas e familiares de pessoas com deficiência, vide em http://www.inclusive.org.br/?p=23982 .

É óbvio que houve grave prejuízo para as pessoas com deficiência com a “sensibilização às avessas” da sociedade. Pensar que doença mental é o mesmo que deficiência intelectual e sendo assim a escola inclusiva não pode existir para não misturar “anjos” com “demônios” é tudo que não pode prosperar como dúvida nas cabeças brasileiras. Para deixar claro, o assassino de New Town não tinha diagnóstico médico. Ainda que fosse uma pessoa com transtorno mental (doença), ou manifestação do espectro do autismo ou deficiência intelectual, isso não faria com que ele se tornasse um autor de massacre. O que leva a esse comportamento é uma associação de fatores pouco conhecida. Dessa forma, as suposições não confirmadas, as opiniões desvinculadas do conhecimento científico e o sensacionalismo
merecem e tiveram respostas à altura. No entanto, não soubemos da devida retratação das “autoras” e dos veículos de comunicação tão responsáveis quanto elas.

Por outro lado, prestando serviço de interesse público, o jornal “O Estado São Paulo” publicou em 09/01/2013, matéria de William Cardoso. Ainda bem que o fato veio à tona e foi filtrado e divulgado nas redes dos ativistas do movimento das pessoas com deficiência. Citando o texto: “A Defensoria Pública tenta reverter uma decisão judicial que determinou a realização de laqueadura em uma mulher de 27 anos, sem filhos, moradora de Amparo, no interior paulista. A sentença, de 2004, da juíza Daniela Faria Romano, veio após uma ação protetiva do Ministério Público Estadual, que levou em consideração o perfil socioeconômico e o fato de a mulher sofrer retardamento mental moderado para pedir a esterilização...”

Em minha longa jornada de militante, de médica fisiatra e professora de medicina e de gestora governamental, tendo ocupado o cargo de Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, não me recordo de ter tido conhecimento ou enfrentado tamanho absurdo e afronta aos direitos humanos de uma mulher com deficiência, na iminência de ser castrada em seus sonhos, seu corpo e seu futuro, por ordem da INjustiça oficial. A sentença ficou adormecida desde 2004 (se houvesse chegado a nós naquele momento a história teria tomado outro rumo). A desventura foi continuada como segue: “Diante da recusa da paciente em substituir o DIU, a juíza Fabiola Brito do Amaral, que cuida atualmente do caso, determinou em outubro que fosse cumprida a sentença de 2004. A laqueadura estava prevista para o dia 21 de dezembro (de 2012), mas a mulher não foi encontrada, porque se escondeu em outra cidade, por temer que a encontrassem e fizessem a cirurgia que a impediria de se tornar mãe. Uma nova data será marcada para o procedimento.”

Tudo indica que uma juíza brasileira tomou emprestada a Lei Alemã de Esterilização, de 14 de julho de 1933, formalmente “Lei para a prevenção da descendência de pessoas com doenças genéticas”, entre as quais foram condenadas à esterilização forçada as “debilidades mentais”, apenas seis meses após a subida de Hitler ao poder. Nefastos tempos.

Mais intrigante ainda foi saber que esse ato estapafúrdio continua em vigor ameaçando a jovem de 27 anos, devido à confirmação de outra juíza, no ano passado. A “culpa” da ré é ser pessoa com deficiência que deseja ser mãe. A decisão judicial, provocada pelo Ministério Público, considerou a baixa condição econômica e a necessidade de medida protetora como
razões suficientes para ferir e retirar a dignidade de uma mulher pobre com deficiência intelectual.

Desde o nazismo até os nossos dias os direitos humanos ganharam força e vem sendo, cada vez mais, invocados para proteger e assegurar que as pessoas tenham liberdade e igualdade em suas vidas. Com esta finalidade foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

Posteriormente ficou patente que alguns segmentos sociais necessitavam que a garantia de seus direitos viesse expressa de forma específica, devido a sua condição histórica de sofrer diversas formas de discriminação e violação de seus direitos. Nesse perfil encaixam-se as pessoas com
deficiência.

Desse modo, o mais recente tratado da ONU é a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006. Sua elaboração tem como pontos de partida o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as declarações e outros documentos internacionais voltados para as pessoas com deficiência, as conquistas do movimento político desse segmento, os avanços da ciência, a noção de que deficiência é um conceito em evolução e resulta da interação da pessoa com as barreiras da sociedade e o crescente estímulo à convivência e respeito para com a diversidade humana.

A Convenção contém uma riqueza de informações e de medidas a serem colocadas em prática, assim como caracteriza como discriminação atitudes e comportamentos que possam violentar a condição de pessoa humana daqueles que apresentam alguma deficiência. Seu texto é fruto da experiência em muitas culturas e de violências vividas em cada parte do
mundo.

Trabalhei diretamente na elaboração da Convenção, de 2003 a 2006, interagindo com a diplomacia, as instâncias governamentais e as organizações das pessoas com deficiência. Tenho orgulho de tudo fizemos e admiração pelo que a Convenção representa. Confio que ela possa proteger os meus próprios direitos de mulher com deficiência física.

Graças à soma de esforços, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no Brasil tem equivalência à emenda constitucional, de acordo com o Decreto Legislativo nº 186/2008 e Decreto nº 6.949/2009, do Executivo. A Convenção aplica-se integralmente a toda e qualquer pessoa, a cada ente federado e aos Poderes da República.

O caso da mulher com deficiência intelectual do município de Amparo, São Paulo, condenada à esterilização involuntária preventiva está proibido na Convenção e, portanto, é uma arbitrariedade que não pode acontecer. Nos artigos 1- propósito, 6 – mulheres com deficiência, 12 – reconhecimento igual perante a lei, 17 – proteção da integridade da pessoa e 23 – respeito pelo lar e pela família encontram-se as razões e proibições certas e diretas para impedir que a jovem brasileira seja vítima do Estado.

Como se sabe, não é admissível que juízes e advogados desconheçam as leis e menos ainda que descumpram a Constituição e os atos com equivalência constitucional, o que é o caso da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Não se pode deixar passar que agentes do Estado atuem como se a Convenção não existisse.

A redação final do artigo 23, referente ao respeito pelo lar e pela família, foi alcançada após um dos debates mais acirrados entre visões de mundo diferentes onde se manifestaram o Estado do Vaticano (observador na ONU), os países muçulmanos, e muitas nações entre as quais o Brasil. Defendemos energicamente os direitos sexuais e reprodutivos das pessoas
com deficiência. Para que houvesse o consenso, a redação do artigo 23 não apresenta os termos acima, o que em nada reduz a proteção que está assegurada ao segmento, como se vê:

“1. Os Estados Partes tomarão medidas efetivas e apropriadas para
eliminar a discriminação contra pessoas com deficiência, em todos os
aspectos relativos a casamento, família, paternidade e relacionamentos,
em igualdade de condições com as demais pessoas, de modo a assegurar
que:

a) Seja reconhecido o direito das pessoas com deficiência, em idade de
contrair matrimônio, de casar-se e estabelecer família, com base no livre e
pleno consentimento dos pretendentes;

b) Sejam reconhecidos os direitos das pessoas com deficiência de decidir
livre e responsavelmente sobre o número de filhos e o espaçamento entre
esses filhos e de ter acesso a informações adequadas à idade e a educação
em matéria de reprodução e de planejamento familiar, bem como os meios
necessários para exercer esses direitos.

c) As pessoas com deficiência, inclusive crianças, conservem sua
fertilidade, em igualdade de condições com as demais pessoas.”

A simples leitura da Convenção deixa claro que as juízas e os membros do Ministério Público Estadual de São Paulo erraram ao agir conforme consta da matéria. Decidir sobre a integridade física e a fertilidade de alguém da maneira como foi realizado nos leva a pensar que essas autoridades discriminaram a jovem de Amparo por ser pobre, ser mulher
e ter deficiência intelectual. E discriminar uma pessoa com deficiência no Brasil é crime!

Vamos proteger a jovem de Amparo antes da nova data do procedimento de esterilização. Contamos com a Defensoria Pública, que merece nosso agradecimento e nossa força para anular a sentença absurda. Nosso papel de elaboradores da Convenção é exigir das instâncias jurídicas e administrativas a imediata suspensão e anulação do ato nazista e eugênico. Cabe ao Estado promover e oferecer os recursos para que essa jovem mulher com deficiência (e tantas outras) receba todas as informações e apoios para seguir sua vida e um dia se tornar mãe como é o seu desejo.

Docente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Mestre em Medicina Física e Reabilitação pela UFRJ. Primeira Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e coordenadora geral da CORDE, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, de 2002 a 2010. Representou o Brasil na ONU na elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e liderou o processo de sua ratificação. Recebeu em 2010 o inédito prêmio da Organização dos Estados Americanos – OEA, em “Reconhecimento por seu trabalho para um Continente Inclusivo”. Como consultora, atuou na Comissão Nacional de Organização da Conferência Rio+20, 2012, primeira conferência da ONU com acessibilidade.

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