segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

DEFICIENTES INTELECTUAIS - Encarcerar é a solução final?

Imagem Publicada - uma fotografia em preto e branco, onde se vê uma grade, e atrás dela um corpo humano deitado de lado, do qual só vemos uma mão que se agarra à uma das barras, e seus pés que saem para fora da grade que o aprisiona. Esta foto é parte de uma campanha da OMS pelo fim dos manicômios ou outras formas institucionalizadas de encarceramento de pessoas com transtornos mentais, inclusive pessoas com deficiências ou não. (autoria Harrie Timmermans)


No calor insuportável das últimas noites, há um incerto alívio quando sentimos alguma brisa para nos aliviar. Mas se nos transpormos para corpos também encarcerados, qual será nossa sensação térmica? Qual será o calor inumano que nos cerceará? Será que estamos vestindo, ultimamente, o avatar de alguns sujeitos que chamamos de deficientes?


Então, se aspiramos outras formas de calor humano, talvez nos ajude o conhecer e re-conhecer estes sujeitos. Tomando conhecimento crítico da forma como vem sendo torturados, mal-tratados, subjugados, escravizados, abusados, violentados, "enjaulados", e, ainda podendo, experimentalmente, ser cobaias humanas. Ontem, eram chamados de ''retardados mentais''. Hoje, devem ser, respeitosamente, consideradas: são as pessoas com deficiências intelectuais.

Por enquanto, dada uma trégua pela Terra, ainda estamos nos recuperando da enxurradas,enchentes e aguaçais, mas outros tremores e temores nos alertam. Surgem novas/velhas notícias que demonstram a utilização de cárcere e privação de liberdade para pessoas classificadas como "DEFICIENTES MENTAIS".

Primeiramente temos um jovem holandês, Brandon van Ingen, que se encontra acorrentado, a uma parede, em uma clínica psiquiátrica, pois segundo a Secretária de Estado da Saúde: "O seu caso é tão sério que ele tem de ser privado da sua liberdade em nome da sua própria segurança e da dos outros". A ele só são permitidos passos até um limite. É considerado perigoso, assim como o foram milhares de outros que ainda vivem em manicômios, inclusive no Brasil (vejam A Casa dos Mortos - documentário de Débora Diniz)

Esta história de ''tratamento" a um jovem holandês, me faz voltar no tempo. Me lembro quando, há muitos anos atrás, ajudado por uma amiga, traduzimos o texto "Bem vindo à Holanda", escrito por Emily Pearl Kinsley, uma vez publicado, por ser inédito em português, espalhou-se pela Internet. O texto foi usado no lançamento do site do DefNet (www.defnet.org.br/holanda.htm). Parece-me que a escritora antevia uma chegada, os pais-viajantes, a uma terra que não desejamos chegar, mas que quando lá estamos devemos buscar suas ''belezas".

Hoje repenso se devemos essa viagem para as pessoas com deficiencia intelectual. Isso se considerarmos a permanência de uma antiga e permanente "confusão" entre deficiência e doença. Brandon vive preso a uma parede com um colete fechado a chave e com uma corrente de 1,5 metros, desde 2007. E, pelo visto, lá permanecerá por mais alguns anos.

Por mais de 16 (dezesseis) anos, em um cubículo subterrâneo de 12(doze) metros quadrados foi mantida uma idosa com deficiência intelectual em Sorocaba, SP. É aqui bem perto de Campinas, não preciso viajar para a Holanda. Essa mulher foi resgatada de um ambiente com mofo, baratas e privação total de luz. Ela hoje tem tambem, com toda certeza psiquiátrica, graves sequelas mentais.

A sra. Sebastiana Aparecida Grotto, 64 anos, foi mantida em cárcere privado por seu marido, João Batista Grotto, sob a alegação cruel e já naturalizada de " que a idosa era mantida no porão para sua própria segurança, já que, se saísse da casa, não saberia o caminho de volta...". Esta lógica de cuidado com pessoas idosas, pessoas com deficiência e, principalmente, com pessoas com transtornos mentais crônicos, como as demências, é afirmada até pelos se especializam em situações limites que os envolvem.

Como psiquiatra e trabalhador da Saúde Mental já tive a triste oportunidade de ver/vivenciar/sentir, ao vivo e a cores, semelhante atitude de um familiar para com um sujeito com grave comprometimento mental, esquizofrenia. Ele, um delirante crônico vivia em isolamento no "porão" da casa, com as mesma condições insalubres de Sebastiana. E o seu resgaste de cidadania foi difícil, sendo resultado de um trabalho intenso por uma equipe de profissionais de saúde de um Caps em Campinas, SP. Mas as imagens de seu isolamento permanecem vivas em minha memória. São agora reavivadas pelas notícias que retransmito. Por motivos éticos não amplio os dados sobre este ser humano, mas tenho certeza de que muitos dos meus colegas que vivenciaram seu resgate ainda tem registradas as fortes sensações e emoções que as idas à essa casa, onde viveu um sujeito desfigurado, por contato com moscas e abandono.

Considero importante ressaltar que as justificativas utilizadas, tanto por familiares como por nossas sociedades e o Estado, para que se utilizem as formas de isolamento, cárcere e privação de liberdade, são sempre as mesmas: tudo é feito para que protejamos os ''normais' dessas '' anormalidades e sua periculosidades''. E todas as afirmações são sempre, sutilmente, colocadas no mesmo ''saco'', sempre se fala ou se afirma (até "cientificamente") que estamos fazendo ''o melhor e o possível para a proteção dessas pessoas".

Isso é o que já foi dito pelo pai de Zaqueu, com 25 anos, que foi enjaulado, em Sumaré, SP, sob a alegação de que estava sendo "protegido para controlar o comportamento agressivo causado por uma deficiência mental'', e, depois, buscou-se uma instituição para sua internação.

O valor ético e bioético de sua autonomia é também jogado em um '' saco " só que de lixo, pois em nossas visões e defesas inconscientes estes sujeitos já moram e vivem acorrentados em nossos subterrâneos, sejam individuais ou coletivos. A erradicação do ''mal" que representam ou personificam justificou até seu extermínio, assim como biopolíticas de isolamento, encarceramento, experimentação cientifica ou institucionalização ad infinitum... forever. Encarcerar foi e pode ser a solução final.

Mas a lógica perversa que justifica a diferentes biopolíticas e transformações de seus corpos em "matáveis ou sacrificáveis" (homo sacer) não é privilégio de ideologias, Estados totalitários ou genocidas. É uma lógica que pode atravessar, sem fronteiras ou distinções de gênero, etnia, nível sócio-econômico e cultural, os nossos coraçoes e mentes. É quando aparecem as justificativas e racionalizações para que façamos a 'exclusão' dessas diferenças ou, com convém ao modelo biomédico, anormalidades ou deficiências.

A questão do uso do corpo considerado anormal já foi amplamente discutido, porém isso não basta para que atitudes extremas continuem sendo aplicadas à estas vidas humanas. O exemplo do jovem português Rui Duarte Silva, trazido à luz pela imprensa portuguesa recentemente, nos esclarece mais ainda. Não bastou que os considerassemos imbecis, idiotas ou cretinos, foi e é preciso um pouco mais de segregação e preconceito com estes "mentecaptos".

O jovem Rui foi transformado em ''escravo'', um ''famulus'' como o radical latino da palavra família. Ele ficou 24 (vinte e quatro) anos sob total privação de tudo o que conhecemos como direitos de um ser ''considerado normal''. Segundo a acusação do Ministério Público, para a condenação da família que o escravizou: "...Negaram-lhe o direito à alfabetização. Cedo o transformaram num mero criado, analfabeto e submisso, a quem nem dispensavam os cuidados de alimentação, higiene e saúde mais básicos''.

Essa escravização não é um fato isolado. Há milhares de pessoas com deficiência intelectual, em especial meninas e mulheres, que estão sob a vulneração e o abuso de seus corpos, seja para o trabalho assim como para a prostituição. E isso já foi constatado e denuciado. Recentemente alguns desses seres humanos formaram um grupo de escravos na China, vendidos para uma fábrica de produtos químicos, após experimentarem o isolamento em um asilo. A história se repete e se mantém na negação de sua diferença intelectual. Ainda mais quando os colocamos em uma posição de ''mentalmente pobres", onde a idéia de pobreza reforçará nossos preconceitos e sua inferiorização.

Pela transversalidade e transculturalidade dos preconceitos e das crueldades inflingidas a pessoas com deficiência intelectual (outrora denominados '' deficientes mentais") é que devemos trazer também à tona o que pode ser sua libertação: a afirmação de seus Direitos Humanos.

Em 2004 foi promulgada pela OMS/OPAS a Declaração de Montreal sobre a Deficiência Intelectual, que afirma: "Apoiar e defender os direitos das pessoas com deficiências intelectuais; difundir as convenções internacionais, declarações e normas internacionais que protegem os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais das pessoas com deficiências intelectuais; e promover, ou estabelecer, quando não existam, a integração destes direitos nas políticas públicas nacionais, legislações e programas nacionais pertinentes".

Para os Brandons, Sebastianas, Zaqueus, Ruis e muitos outros/outras ainda em situação de vulneração, exploração, cárcere, escravidão ou institucionalização definitiva é que devemos, urgentemente, confirmar o seu resgate para além das grades visíveis, assim como das mais tenazes: as invisíveis de nossos estigmas e preconceitos.

copyright:
: Jorge Márcio Pereira de Andrade - Campinas, SP, Brazil ( 2010-2011 - favor citar o autor e as fontes em republicações livres na Internet ou outros meios de comunicação de massa)

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